Como se montou a prova do “maior escândalo da história da República” e porque essa “prova” é falsa e precisa ser revista pelo STF
VALE A PENA ver de novo. Está no YouTube (http://youtu.be/-smLnl-CFJw), nos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) do dia 29 de agosto, no julgamento do mensalão. A sessão já tinha 47 minutos. Fala o ministro Gilmar Mendes. Ele esclarece que tratará da “transferência de recursos por meio da Companhia Brasileira de Meios de Pagamento (CBMP)”. Diz, preliminarmente, que, a seu ver, “se cuidava” de recursos públicos. Faz, então, uma pausa. E adverte ao presidente da casa, ministro Ayres Britto, que fará um registro. De fato, é uma espécie de pronunciamento ao País.
Ele diz que todos que tivemos alguma relação com esta “notável instituição” que é o Banco do Brasil “certamente ficamos perplexos”. Lembra que o revisor, Ricardo Lewandowski, “destacou que reinava uma balbúrdia” na diretoria de marketing do banco e completa dizendo que parecia ser uma balbúrdia no próprio banco como um todo. A seguir, ergue a cabeça, tira os olhos do voto que lia meio apressadamente, encara seus pares. E diz cadenciadamente: “Quando eu vi os relatos se desenvolverem, eu me perguntava, presidente: o que fizeram com o Ban-co-do-Bra-sil?”.
Então, põe alguns dedos da mão esquerda sobre os lábios e explica: “Quando nós vemos que, em curtíssimas operações, em operações singelas, se tiram desta instituição 73 milhões, sabendo que não era para fazer serviço algum…” Neste ponto, parece tentar repetir o que disse e fala engolindo pedaços das palavras: “E se diz isso, inclus… [parece que ele quis dizer inclusive] não era para prestar servi [serviço, aparentemente].” E conclui, depois de pausa dramática, ao final separando as sílabas da palavra para destacá-la: “Eu fico a imaginar [...] como nós descemos na escala das degra-da-ções.”
RB vê a narrativa do ministro de outra forma. Foi um dramalhão, um mau teatro. Mas, a despeito do grotesco, a tese central do mensalão é exatamente a encenada pelo ministro Mendes. E só foi possível aos ministros do STF concordar com ela porque se tratou de um julgamento de exceção. Um julgamento excepcional, feito sob regras especiais, para condenar os réus.
Esta tese diz que, sob o comando de Henrique Pizzolato, o então diretor de marketing e comunicação do BB, foi possível tirar, graças a uma propina que ele teria recebido, 73,8 milhões de reais para que uma trinca de quadrilhas comandadas pelo ex-chefe da Casa Civil do governo Lula, José Dirceu, comprassem deputados.
Deixaram os advogados da defesa falar por apenas uma hora em agosto. E os ministros falaram por mais de dois meses, com uma espécie de promotor público, o ministro Joaquim Barbosa, brandindo a regra de condenar por indícios, e não por provas, réus a quem foi negado um dos princípios históricos do direito penal, o da presunção da inocência.
E deu no que deu. A tese central do mensalão é tão absurda que ainda se espera que o STF possa revogá-la. Ela diz que foram desviados para o PT os tais 73,8 milhões de recursos do BB para comprar sete deputados e aprovar, por exemplo, a reforma da Previdência, que todo mundo sabe ter passado com apoio da direita não governista sem precisar de um tostão para ser aprovada.
Dos autos do processo, com aproximadamente 50 mil páginas, cerca de metade é dedicada a três auditorias do BB sobre o uso do Fundo de Incentivo Visanet (FIV), do qual teriam sido roubados os tais milhões. Pois bem: em nenhuma parte, nem em uma sequer das páginas dessas gigantescas auditorias, afirma-se que houve desvio de dinheiro do banco.
Nem o BB nem a Visanet processaram Pizzolato até agora. Simplesmente porque, até agora, não se propuseram a provar que ele comandou o desvio, nem mesmo se houve o desvio. E também porque está escrito explicitamente nos autos que não era ele quem ordenava os adiantamentos de recursos para a empresa de propaganda DNA, de Marcos Valério, fazer as promoções.
O adiantamento de recursos à DNA era feito não pela diretoria que ele comandava, a Dimac, mas por um funcionário da Direv, a diretoria de varejo. Esta diretoria era, com certeza, a grande interessada na venda dos cartões, o que, aliás, fez com raro brilho, visto que o BB desbancou o Bradesco, o sócio maior da CBMP, na venda de cartões de bandeira Visa.
Nesta edição, na matéria a seguir, “Um assassinato sem um morto”, Retrato do Brasil mostra um documento reservado da CBMP, preparado por um grande escritório de advocacia de São Paulo para ser encaminhado à Receita Federal, no qual a companhia lista todos esses trabalhos, que confirma informações constantes das outras três auditorias do BB. Porém, acrescenta um dado essencial: mostra que a empresa tem os recibos e todos os comprovantes — como fotos, vídeos, cartazes, testemunhos – atestando que os serviços de promoção para a venda de cartões de bandeira Visa pelo BB foram realizados. Ou seja, que não houve o desvio. A tese do grande desvio que criou o mensalão surgiu na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios já no início das investigações, em meados de 2005, quando se descobriu que Henrique Pizzolato estava envolvido no esquema do “valerioduto”. E ganhou forma acabada no relatório final desta comissão, entregue à Procuradoria da República em meados de abril de 2006.
O então procurador-geral Antônio Fernando de Souza, menos de uma semana depois, encaminhou a denúncia ao STF, onde ela caiu sob os cuidados do ministro Joaquim Barbosa. O que Souza fez de destaque na denúncia foi tirar da lista de indiciados feita pela CPMI, na parte que apresentava os que operavam o FIV no BB ou que poderiam ser vistos como responsáveis pelo desvio, todos os que não eram petistas. Souza — não ingenuamente, deve-se supor — retirou da lista de indiciados todos os que vinham do governo anterior, do PSDB, entre os quais o diretor de varejo, que tinha, no caso, o mesmo, ou até mais alto, nível de responsabilidade de Pizzolato. E excluiu também o novo presidente do banco, Cássio Casseb, um homem do mercado.
Sob a direção de Barbosa não foi realizada nenhuma nova investigação de peso e a tese do desvio de dinheiro do BB continuou sendo a peça central da armação acusatória. O delegado da Polícia Federal, Luiz Flávio Zampronha, chegou a ser mobilizado para investigar o que ainda se imaginava serem duas fontes de dinheiro possíveis para o mensalão: o dinheiro do FIV e o de empresas então dirigidas pelo financista Daniel Dantas, a Telemig, a Amazônia Celular e a Brasil Telecom, que também tinham Marcos Valério como agente publicitário.
Zampronha, tudo indica, chegou a conclusões diferentes das de Souza e de Barbosa, mas seu relatório não consta dos autos da Ação Penal 470, em julgamento no Supremo. Tanto Souza como Barbosa desqualificaram o delegado no começo de agosto, quando ele deu declarações como a de que os empréstimos dos banqueiros ao “valerioduto” de fato existiram e a de que as acusações contra José Dirceu por formação de quadrilha não passavam de figuração.
Preocupado em construir uma historinha — em torno de, como veremos no caso de Pizzolato, simplórias acusações de corrupção —, o ministro Barbosa não quis entender a estrutura jurídica do Fundo de Incentivo Visanet, sua natureza propositadamente confusa. A CBMP, cujo nome fantasia era Visanet e hoje é Cielo, é dirigida pela Visa Internacional, empresa com sede na Califórnia e uma gigante da era dos cartões de crédito e débito de aceitação global.
Em duas centenas de países, a Visa juntou interesses contrários localmente — como, no Brasil, os bancos de varejo Bradesco, BB, Santander — em empresas dirigidas por ela, como a CBMP, pela ambição comum de vender mais cartões de sua bandeira. A Visa dá a elas uma fração — 0,1%, um milésimo do movimento de dinheiro dos cartões — para publicidade. Em 2004, por exemplo, no Brasil, como o giro de dinheiro nos cartões Visa foi estimado em 156 bilhões de reais, a CBMP adiantou para os bancos o milésimo previsto para publicidade, 156 milhões de reais.
O dinheiro sempre sai na forma de adiantamento, para que a máquina de promover a venda de cartões não pare. A CBMP fica com 4% a 6% do dinheiro movimentado pelos cartões, tirando essa parte como comissão dos que vendem produtos ou serviços pagos pelos cartões. E assina contratos-padrão com os bancos constituidores dessas empresas locais. Nestes, permite que o banco associado escolha se quer que ela pague diretamente aos fornecedores pelos serviços de publicidade para promoção dos cartões ou se quer receber a verba para a promoção diretamente em seu orçamento, prestando contas posteriormente a ela. Como se lê na ilustração com um trecho do parecer jurídico do BB, a escolha do banco estatal foi a de não receber os recursos em seu orçamento, com o objetivo de pagar menos imposto de renda. Para tanto, não assinou contrato com a DNA para cuidar especificamente destes recursos.
Diz o texto do parecer reafirmado em 2004 e firmado inicialmente em 2001, quando o BB associou-se à CBMP e foi criado o FIV: os artigos 436-438 do Código Civil trazem a figura jurídica “Estipulação em favor de terceiros”, que permite este tipo de relação — a CBMP pagar ao fornecedor da DNA por um serviço feito por demanda do BB. O parecer afirma que não é necessária a formalização de contratos nem do BB com a DNA para esse fim específico e nem da CBMP com a DNA. O ministro Barbosa ficou cobrando de Pizzolato a inexistência desses contratos, como se Pizzolato fosse o responsável pela situação, e não a direção do BB.
A confusão estrutural, portanto, é essa: por contrato considerado o mais adequado pela direção do banco, o BB nem ficava com o controle completo da execução das operações de promoção dos cartões nem tinha interesse em apresentar seus planos de venda de cartões de maneira muito aberta, para não dar dicas de suas estratégias de marketing para concorrentes, como o Bradesco.
Como se viu, Barbosa não tocou nestes assuntos mais complexos. Acabou grosseiramente apresentando Pizzolato como o mandachuva do dinheiro do FIV, capaz de sacar dinheiro de lá para não fazer nada — a não ser ajudar a quadrilha do PT, como ele acha que provou. Barbosa não quis ver que, na questão do uso do FIV, a figura central do BB não era o diretor de comunicação e marketing, mas o diretor de varejo, interessado em vender mais cartões e, portanto, ganhar mais comissões.
O ponto de partida de Barbosa foi o fato de Pizzolato ter sido incluído na lista de recebedores de dinheiro do “valerioduto”. Pizzolato defendeu-se dizendo que apenas repassou dinheiro para o PT do Rio, coisa verossímil, visto que, como já demonstrou RB, esta seção do partido foi a que mais recebeu recursos do “valerioduto”, depois do publicitário Duda Mendonça.
Pizzolato foi derrotado porque o STF inverteu, para este julgamento e sob falsas alegações, o ônus da prova. Ele é que tinha de provar que não recebeu propina. O fato de Pizzolato ter aberto seus sigilos bancário e fiscal logo que o escândalo estourou e de a Receita Federal ter feito uma devassa monumental em suas contas — especialmente para saber se ele não havia comprado o apartamento em que mora em Copacabana com a suposta propina — e não ter encontrado nada não convenceu os ministros, como se vê pelo mal informado e patético depoimento do ministro Gilmar Mendes.
Resta um porém: como os serviços de promoção dos cartões de fato foram feitos, se não houve o desvio de dinheiro do BB, como explicar a propina — a qual, aliás, o Supremo não tem prova de que Pizzolato recebeu? De última hora, um ministro do Supremo alegou, para condenar Pizzolato, que tanto era verdade que ele havia recebido o dinheiro de Valério por meio de um contínuo da Previ, o fundo de pensão dos funcionários do BB, que dividiu a quantia recebida com o próprio contínuo, a quem teria dado 18 mil reais. O ministro, Dias Tofolli, talvez deslumbrado com o ânimo anticorrupção do STF, esqueceu-se de que a contribuição de Pizzolato para o contínuo — dada junto com outras pessoas para que ele reconstruísse um barraco em que morava — era de bem antes do escândalo do mensalão.
Nada a estranhar neste absurdo. Se a tese central do mensalão não tem pé nem cabeça, por que buscar coerência nos seus detalhes?
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Fonte: Retrato do Brasil (Nº 65 – Dezembro/2012)