No Brasil a farsa se repete como história. Veja a nova tentativa do governo de aprovar o que chama de reforma tributária, assunto inexistente quando viajei duas semanas atrás e já moribundo quando voltei. Se as coisas vão razoavelmente bem - ou seja, com vento em popa -, ninguém fala em mudar o rumo; quando a tempestade começa a bater, anuncia-se alguma mudança para melhorar o moral da tripulação. Para variar, é tarde e é pouco. Aliás, o mesmo governo, como o anterior, não dizia que já tinha feito a reforma? A única coisa que mudou foi a curva da arrecadação, para cima, com intensidade bem maior que a do crescimento do PIB. É a constante única da história do Brasil.
Basta verificar em História do Brasil - Uma Interpretação, de Carlos Guilherme Mota e Adriana Lopez (Editora Senac). O calhamaço de mais de mil páginas é muito mais uma panorâmica tirada de interpretações alheias; apesar do tamanho do volume, cada episódio é tratado com brevidade decepcionante, perdendo-se em repetições e desequilíbrios. Mas ali está claro que, primeiro, essa história é uma cadeia de golpes e contragolpes e, segundo, seus elos reafirmam a incapacidade cultural de enfrentar as questões a fundo. Gilberto Freyre disse que independência, abolição e república foram mudanças que cumpriram os objetivos, com a vantagem de não terem deixado de lado a suavidade que caracterizaria o brasileiro. Nada mais falso - ainda que a intelectualidade paulista faça tanta questão de endossar a tese.
Outro problema do livro, porém, é trabalhar com conceitos para lá de datados, cobrando, por exemplo, uma "revolução burguesa" que o Brasil não fez e, mais adiante, se queixando do modelo "autocrático-burguês" definido por Florestan Fernandes como definidor do Brasil. (Acho que só aqui e em poucos lugares, como as entrevistas de José Saramago, há quem ainda use o adjetivo "burguês" como se fosse a essência do mal. Remanescentes buldogues do socialismo democrático não conseguem escrever um texto sem a palavra.) No livro de Mota e Lopez é evidente o teor anos 60, principalmente quando fala sobre o governo Jango e trata Darcy Ribeiro como profeta do nacionalismo; tudo se passa como se a marginalização social fosse produto da dependência pós-colonial.
Como se vê no momento, a economia nunca foi tão interdependente, para o bem e para o mal. Lula disse que antigamente os países desenvolvidos espirravam e o Brasil pegava pneumonia, mas que agora só nos cabe dizer "saúde" enquanto atravessamos a marolinha do Bush. Notícias econômicas da última semana: produção industrial despencou em outubro; vendas de automóveis caíram 30%; Vale demitiu 1,5 mil empregados; montadoras deram férias coletivas; dólar chegou a R$ 2,50, movido pela maior fuga de capitais dos últimos dez anos... No mundo inteiro os juros são derrubados para reanimar a economia; no Brasil, são mantidos ou aumentados, fazendo a alegria de bancos e estatais. E por quê?
Porque não pode haver moeda forte numa economia dominada por uma máquina pública que pune a produtividade e multiplica os gastos, sem devolver ao contribuinte avanços reais em educação, saúde, justiça e infra-estrutura. (Bolsa Família e crédito consignado, como se sabe, tiram pouco do orçamento e somam muito à simbologia.) PMDB, PSDB ou PT, não importa: o grupo que está no poder pode representar tradições sociais distintas; seu comportamento é sempre muito semelhante. A culpa disso não é, obviamente, exclusiva das multinacionais ou do sistema financeiro internacional, mas antes de mais nada das escolhas feitas pelos brasileiros e seus dirigentes. É até divertido ver Mota e Lopez atacarem o atraso nacional elogiando a Constituição de 1988...
A democracia liberal, em outros termos, não vigora plenamente porque reformas a sério jamais são feitas - como, além da tributária, a política, a trabalhista e a jurídica, entre outras que o governo Lula disse que faria. É mais conveniente se gabar da mistura de monetarismo com assistencialismo e posar de social-democrata. Como disse Sérgio Buarque de Holanda, sem ser ele mesmo um liberal, o liberalismo não se entranhou na formação brasileira. Ou, como disse Octávio Paz, esse sim um liberal, faltou na América Latina do século 19 um Voltaire, um Hume, um pensamento sobre a necessidade de a sociedade impor limites ao Estado. O mais perto que se chegou foi aventado por José Bonifácio, ainda que professor da pomposa Coimbra; o "patriarca" mal durou cinco anos no poder.
Tal padrão de mando é uma criatura tropical, adaptada com sucesso ao meio ambiente pátrio: vem desde os tempos do Segundo Reinado, que, em troca do continuísmo político, passou ao largo da industrialização e adiou ao máximo a abolição. A herança do escravismo está na mentalidade oligárquica que compõe o poder à brasileira, não na cor da pele ou no grau de instrução de quem se senta no trono. No século 20 o Brasil tirou parte do atraso, criando uma sociedade "burguesa" em muitas regiões, mas ainda falta muito a melhorar. Metade dos habitantes segue sem esgoto nem educação. Não é com conceitos deslocados como revolução que se vai incorporá-los à cidadania.
MAIS MACHADONa próxima terça estréia a minissérie Capitu, de Luiz Fernando Carvalho, adaptação de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Com cinco episódios, sempre em torno das 23 h, é o grande evento do centenário de morte. Carvalho fez um trabalho muito inventivo, completamente livre da naftalina das outras adaptações e o único que respeitou a estrutura do livro, na qual a questão da traição se desvela apenas no último terço da história. O romance é sobre um adolescente seminarista que se apaixona pela bela vizinha e se vê dividido entre Deus e Diabo, oscilando entre vício e virtude, inocência e malícia, e não tem repertório emocional para lidar com essa realidade, mimado e egocêntrico como é. Ao contrário do que dizem analistas marxistas, Bentinho representa não uma "elite" que se pretende liberal, mas uma casta que se gaba da tutela da Igreja e do Estado, de seus privilégios e aparências. É uma gente romântica, alienada, frívola - típica do Segundo Reinado.
O diretor filma essa história como uma ópera, sem o pseudonaturalismo machadiano; exagera o cômico, o lírico, o melancólico e sobretudo o metalingüístico. Para recriar o efeito dos comentários e da fragmentação do escritor, recorre a caracterizações e gestuais com boa dose de artifício, até ao teatro Nô; ao uso de canções do pop atual misturadas com a tradição erudita; a escravas que carregam a porta; a vinhetas radiofônicas. Mais importante, faz de Dom Casmurro um narrador sempre à sombra, à espreita, como se quisesse participar das cenas e reviver aquelas emoções - e por isso a idéia do cenário sem paredes foi brilhante. Essa combinação entre o contínuo e o descontínuo, entre o natural e o fabricado, é seu maior trunfo, além da beleza da série em si mesma, com seus ótimos atores novos ou consagrados (Michel Melamed, Letícia Persiles, Maria Fernanda Cândido, Pierre Baitelli e tantos mais) e sua criatividade audiovisual.
Nada disso significa que o enredo não esteja lá, com todo seu potencial de mover nossos sentimentos e entendimentos. A mim ficou novamente claro, depois de ver os três primeiros episódios (colaborei como consultor da minissérie, mas só tive acesso ao resultado na semana passada), que mais relevante do que a dissimulação de Capitu é a infantilidade de Bentinho, que afinal se deixa encantar por Escobar antes mesmo dela. Na graduação das culpas, a dele certamente foi maior. Seus sonhos de conciliação plena, de "felicidade e glória", de um idílio tão sacro quanto profano, já são a condenação deles mesmos. Capitu é apenas mais capaz de ação do que ele, inerte até no extremo das situações. A inocência é o oitavo pecado capital.
POR QUE NÃO ME UFANO"Sua arquitetura é uma síntese de seus vários interesses e talentos e a manifestação de sua curiosidade ilimitada. (...) Um corredor não é apenas uma ligação entre cômodos, mas uma experiência sensorial em si mesma (...). A surpresa desenha um papel fundamental. (...) Como um cineasta ou diretor de teatro, ele quer conduzir o visitante por uma seqüência específica de experiências táteis, visuais e espaciais. (...) Os materiais também evocam sensações e emoções: acolhimento, aconchego, uma conexão com a história. (...) O fato de que a maior parte deles é originária do Brasil (...) confere um distinto sotaque brasileiro a uma espécie de modernismo universal. (...) As casas projetadas por Weinfeld são extremamente funcionais (...) sem sacrificar os efeitos arquitetônicos que ele infunde." Raul Banerreche, crítico de arquitetura, no livro Isay Weinfeld (editora Bei). Para quem ainda despreza o talento dele, alegando ser arquiteto de interiores da classe alta, nessa eterna confusão nacional entre sociologia e estética.
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