Adaptada do romance Dom Casmurro e dirigida por Luiz Fernando Carvalho, a minissérie Capitu quebra convenções para melhor traduzir a obra-prima de Machado de Assis
Isabela Boscov
Fotos divulgação |
DOIS PARES DE JÓIAS Maria Fernanda e Letícia (acima), que fazem Capitu: que narrador permaneceria racional diante de olhos tão verdes e feiticeiros? |
As adaptações de livros de Machado de Assis (1839-1908) são numerosas no cinema e na televisão brasileiros. O que sempre andou em falta foram as adaptações que façam jus ao arrojo de forma e de temas que marcou a fase mais tardia da obra do escritor. Isso é o que ambiciona Capitu, a minissérie em cinco capítulos que a Globo exibe entre os dias 9 e 13. Dirigida por Luiz Fernando Carvalho, esta versão de Dom Casmurro, a célebre história da paixão e do ciúme escaldante de Bento Santiago pela bela Capitu de "olhos de ressaca", é ousada por reproduzir o texto do autor praticamente na íntegra. E é mais audaciosa ainda na encenação: rodada na maior parte em um galpão, ela é totalmente livre. Os objetos de cena movem-se desimpedidos para lá e para cá, e casas e cômodos às vezes são apenas riscos no chão. O ator Michel Melamed, que faz o Bento narrador e o Bento protagonista na sua idade adulta, ronda como um fantasma, velho e curvado, os acontecimentos de sua adolescência e juventude, como se eles estivessem se passando de novo diante de seus olhos. O elenco veste um figurino que é uma versão expressionista da moda da segunda metade do século XIX, e interpreta em um estilo exuberante, adequado a um teatro (ou a uma ópera, que é como o narrador define a vida humana). A trilha sonora tem composições eruditas, mas também rock pesado e folk. Nas poucas ocasiões em que os atores saem ao centro antigo do Rio de Janeiro, as ruas não estão "maquiadas": podem-se ver as pichações nas paredes e os carros passando.
Assim como em Hoje É Dia de Maria, Os Maias e A Pedra do Reino, os outros trabalhos mais conhecidos de Carvalho, a impressão inicial pode ser de algo barroco e excessivo. Mas ela logo se dissipa: ambientar a adaptação de uma obra tão moderna no seu período histórico original, com os adereços e convenções das produções "de época", poderia facilmente dar um ar antigo àquilo que continua vivo e novo. O diretor ainda reforça, assim, o seu recado de que essa história de amargura e coisas que não têm conserto não é uma história que já foi – é uma história que não pára de acontecer, com Bentos de todos os tempos. E que desde que foi publicada, em 1899, não pára também de intrigar os críticos literários (e, mais recentemente, também os psicanalistas).
Chegando aos leitores numa era de sonetos e romances com moral, o livro que divide com Memórias Póstumas de Brás Cubas o posto de conquista máxima de Machado de Assis rompeu com tudo o que se acreditava correto e necessário. O propósito anunciado do narrador Bento Santiago é unir as duas pontas de sua vida – a ponta em que está, idoso, sozinho e amargurado, à ponta em que era Bentinho (na minissérie, César Cardadeiro), o protegido filho de 15 anos da viúva e devota Dona Glória, que o queria pôr no seminário. A idéia é um pavor para o menino: feito padre, ele nunca se poderia casar com a vizinha Capitu (Letícia Persiles, e depois Maria Fernanda Cândido), que aos 14 anos era já uma moça de beleza e espírito arrebatadores. A maneira como o narrador junta essas pontas, porém, não tem nada de linear ou organizada: ele conta o que se passou numa tarde, pára para fazer uma digressão, retoma o relato em um ponto mais adiantado, volta para preencher a lacuna que ficara. No que hoje se chama de um fluxo de consciência (e em 1899 ainda não tinha nome), o narrador revela muito de si mesmo – e para si mesmo. Revela-se, por exemplo, um fetichista, que tinha mania de brincar de missa e, já maduro, mandou construir uma réplica de sua casa de infância, com tudo o que ela tivera de bonito e de feio. Mas seu fetiche maior são os olhos claros de Capitu. No decorrer de sua vida, esse fetiche só será superado por outro, despertado justamente por um certo olhar de sua amada: a suspeita de que, já casado com Capitu, foi traído por ela e por seu melhor amigo, Escobar (Pierre Baitelli), e que nem seu filho é mesmo seu.
Capitu se mostra sagaz de maneiras que vão além de sua concepção visual. Dom Casmurro, afinal, é um romance construído sobre incertezas. Bentinho tinha mesmo uma admiração sexual por Escobar, como já especulou o escritor e colunista de VEJA Millôr Fernandes? Capitu cometeu de fato adultério com Escobar? Ou será que Bento imaginou tudo, com a visão turvada pelo ciúme, como argumentou a crítica americana Helen Caldwell em um ensaio que é considerado um marco na análise do romance? Os sentimentos que Bento descreve são os que realmente sentiu, ou foram redesenhados pelo tempo? Bento, enfim, é o que no jargão se chama de um narrador pouco confiável. O leitor deve pesar o que ele diz e decidir se lhe dá crédito ou não, e no quê. Transpor essa fluidez para uma obra visual é árduo: as pessoas não têm dificuldade em questionar o que ouvem ou lêem, mas tendem a crer no que vêem.
Fazer com que as imagens respeitem a margem de dúvida guardada nas palavras, então, é talvez o êxito mais notável de Capitu. O cenário colorido e cambiante ajuda; a narração expressiva de Melamed, também. Mas a decisão essencial de Carvalho, aqui, é a de apresentar tudo que se vê com a imprecisão, a exaltação ou a incongruência que caracterizam a memória. Os familiares de Bentinho, por exemplo, aparecem como caricaturas, em que os traços que mais impressionavam o menino vêm exagerados – a Prima Justina sequíssima e funérea, o agregado José Dias como um vilão de vaudeville, untuoso e ardiloso. Escobar é outro achado: em sua juventude, é sempre visto dançando coreografias vigorosas e atrevidas – está claro que não se sugere que ele de fato sapateava sobre a mesa do refeitório dos padres ao som de Black Sabbath, mas apenas que Bentinho o via como esse espírito livre e heróico. Em um aspecto, entretanto, o diretor escolheu ser inteiramente literal: na vivacidade e na beleza – dos olhos, em particular – de Letícia Persiles e Maria Fernanda Cândido. Diante desses dois pares de gemas esverdeadas, pode-se desculpar a Bento todas as inexatidões e todos os tormentos com que ele se arruinou: como exigir de um narrador enfeitiçado, afinal, que ele seja lúcido?
APENAS BONS AMIGOS? Escobar (à esq.) e Bentinho: para Millôr, havia ali algo mais |