A Lei da Ficha Limpa pode atenuar os comportamentos corrompidos da
política nacional. Importa, no entanto, agir com prudência diante dos
fatos. A lei opera no fim de um processo que inclui ações desonestas
de parlamentares e de membros do Executivo, de representantes de
empresas e de funcionários em todos os Poderes. Os partidos políticos
são dirigidos por oligarcas que ignoram limites à sua ambição pessoal
e de grupo. O clã Sarney exemplifica perfeitamente o caso. Sem
democracia interna nas agremiações e limites à permanência nos cargos
diretivos, primárias obrigatórias e outras medidas corretivas, o
filtro da Ficha Limpa logo estará bloqueado, sendo apenas ornamento
jurídico.
Num país onde a corrupção é sistêmica, vale acompanhar os textos
lúcidos e serenos de um dossiê publicado na Revista Internacional de
Teoria do Direito e de Sociologia Jurídica (número 72, 2009, CNRS,
França). Ali analistas competentes se debruçam sobre casos exemplares,
como os da Itália, da Bulgária, da Polônia, do Marrocos. O exame
interessa a todos os países, na presente crise estatal e de mercado.
Sintetizo o caso da Itália porque ele mostra o quanto é equivocada a
tese de que escândalos e tribunais mudam o juízo dos eleitores ou
melhoram a forma democrática.
Na Itália existem financiamento ilegal de partidos, trapaças no
mercado e no setor público, clientelismo e mesmo simbiose ocasional
com a Máfia. O descalabro leva à queda de poderosos, na Democracia
Cristã. A partir daí surgem os incorruptíveis juízes, seguidos pelos
promotores, Quixotes contra a "partidocracia". Esta é desvalorizada e
a legitimidade plena passa ao Judiciário. Deveria ser consequente a
mudança dos eleitores diante do novo quadro. As urnas concederiam
vitória aos probos, e apenas a eles. Não foi o que ocorreu. Os juízes
desempenharam papel moralizador, mas não houve mudança nos costumes e
práticas institucionais. O movimento das Mãos Limpas apressa a queda
dos antigos oligarcas, dando oportunidade para novos dirigentes que
aproveitam, para chegar ao poder, a campanha em prol da ética. Mais de
150 parlamentares italianos e quase 1.800 chefes locais são
implicados, seis ministros do governo solicitam demissão (algo que
lembra o Brasil).
As oposições usam os processos contra os corruptos. Mas quem integra
as hostes da oposição? Os neofascistas da Liga do Norte, que gritam
contra o "Parlamento dos ladrões", e a esquerda, que agita o moralismo
até o paradoxo. Com o alarido em prol da "ética na política" progridem
os moralistas. O Parlamento passa a ser visto como ilegítimo. Os
deputados, tal é a palavra de ordem, devem seguir os juízes em tudo,
exercendo formas "limpas" de mando político.
Silvio Berlusconi pertence à liderança moralista e se torna imbatível
com a Forza Italia (criada em 1994), que, aliada à Liga do Norte e aos
neofascistas, chega ao poder. A riqueza pessoal de Berlusconi, a sua
rede empresarial, potencia a propaganda sobre a "moralização da vida
pública". Também ajuda muito o trabalho de seus técnicos, afeitos às
pesquisas de opinião e ao marketing. Ajudantes do empresário gerenciam
seus atos políticos.
"A velha classe política foi expulsa pelos eventos e ultrapassada
pelas exigências do nosso tempo. A queda dos velhos governantes,
esmagados pelo peso dos déficits públicos e por um sistema ilegal de
financiamento dos partidos, deixou o país no despreparo e incerteza em
momento difícil de renovação e passagem a uma nova República"
(Berlusconi). Seriam necessários novos homens, novas ideias, novas
práticas para salvar a Itália. A Forza Italia obtém mais de 20% dos
votos em 1994, torna-se o primeiro partido do país. Instalado no
poder, Berlusconi é alvo de processos penais por corrupção. Mas a
Forza Italia se apega ao governo, apoiada por 20% a 30% do eleitorado.
O movimento absorve antigos oligarcas e "renova" a política com
profissionais subservientes a Berlusconi na máquina pública e nas
empresas.
Com a ascensão dos ex-moralistas, o jogo corrupto continua, apoiado
pelos eleitores. "Após ser usada pela classe política para se renovar,
a magistratura foi abandonada e, com ela, a exigência de moralidade e
transparência de que ela era a portadora" (J. L. Briquet). E surge a
campanha contra os "juízes vermelhos", acusados de fomentar golpes
judiciários em prol dos "comunistas" (Cf. Berlusconi, S.: L'Italia che
Ho in Mente). Quanto mais submerso em processos, mais o líder popular
ataca o Judiciário.
Mas não apenas a direita retoma a corrupção como instrumento de
governo. A esquerda levanta-se contra os juízes. Surgem manifestos que
exigem "manter rigorosamente separados os assuntos da Justiça e os da
política". O alvo? Garantir "a estabilidade e a confiança necessária
ao país". O juiz deve retornar ao seu "lugar natural" e restituir à
política "a autoridade que decorre do mandato popular". Massimo
d'Alema, secretário nacional dos democratas de esquerda, defende "o
retorno à posição subsidiária da Justiça em face da política (...), o
funcionamento normal da jurisdição após a fase excepcional da crise,
que, se foi salutar, é historicamente ultrapassada". (D'Alema:
Sovranità della politica e primato della norma, 1997).
Os moralistas políticos esquecem que nem sempre o eleitor é movido
pelo direito, por justiça, transparência, valores éticos positivos. A
política não é palco exclusivo da razão, mas campo hegemônico das
paixões. Entre os cidadãos e as urnas existem os partidos, os
interesses mercantis, a propaganda, os antigos costumes, os favores
prestados pelos ocupantes do poder às famílias, às cidades, às
regiões. E sempre pode surgir um grupo demagógico que "denuncie" a
corrupção alheia, disposto (uma vez chegado aos palácios) a desculpar
a falta própria de escrúpulos.
Sem a democratização dos partidos, de direita ou esquerda, a Ficha
Limpa será apenas o que seu nome diz: vazia.