No segredo dos custos de obras da Copa e da Olimpíada mora o risco de desvio de dinheiro público
As prerrogativas do Estado de Direito autorizam os governos democráticos a impor o sigilo de suas ações à sociedade que representam? Admitindo-se, como quer o governo da presidente Dilma Rousseff, que algum sigilo possa se justificar, quais são seus limites? A segurança do Estado (e das suas autoridades) pode contrariar os direitos fundamentais de informação e de transparência que a democracia assegura aos seus cidadãos? E, em caso de sigilo de matérias que envolvam o uso de recursos públicos, a quem cabem as tarefas de fiscalização e de controle para se evitar os riscos conhecidos de corrupção e fraude?
A controvérsia não é nova, já tinha aparecido nas tentativas do ex-presidente Lula de limitar as competências do Tribunal de Contas da União na avaliação e julgamento das ações do governo federal. Ela reapareceu agora com mais força diante do reconhecimento do governo Dilma de que está atrasado no que se refere às obras e serviços da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016. Para enfrentar o que os críticos consideram ser um atestado de sua incompetência, o governo enviou ao Congresso Nacional uma medida provisória que institui regras especiais para a realização de obras e serviços relacionados com os dois eventos internacionais.
Embora não haja notícia de que a MP aprovada pela Câmara tenha sido submetida ao exame de urgência e relevância exigido pela Constituição, o texto flexibiliza as exigências da Lei de Licitações para as obras da Copa e dos Jogos. Tentativas anteriores do governo do PT para mudar a lei esbarraram na resistência da oposição, mas com a esmagadora maioria conquistada em 2010, a situação mudou e a proposta foi aprovada por 272 deputados contra 76. O texto ainda pode ser alterado quando da votação de destaques ou quando for examinado pelo Senado, mas a realidade da coalizão governista majoritária não sugere que isso seja possível.
O novo Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) autoriza o governo a manter em segredo os orçamentos de órgãos da União, Estados e municípios para as obras da Copa e da Olimpíada – e aqui está o risco de desvio do dinheiro público. Antes dessa alteração, a lei exigia que a administração pública divulgasse no edital de concorrência sua estimativa de custos da obra ou serviço. O cálculo era feito com base em tabelas oficiais de preços ou em pesquisas de mercado e o valor balizava o julgamento das propostas, mas o governo alegou que a divulgação estimulava a formação de cartéis e a manipulação de preços e o propôs o sigilo para enfrentar o problema, sem examinar alternativas.
O RDC contém outros pontos polêmicos, como a possibilidade de se aumentar o valor de um contrato de obras sem limite em uma mesma licitação. Pela regra atual, esses aditivos estavam limitados a 25% em caso de obras novas e a 50% em caso de reformas. A MP ainda estabeleceu que os orçamentos prévios só serão disponibilizados aos órgãos de controle a critério do governo, e suspendeu a garantia de acesso regular às informações por esses órgãos. Na prática, o governo está autorizado a revelar os valores das obras da Copa e das Olimpíadas apenas após sua conclusão, sem compromisso de manter a sociedade informada a respeito dos seus custos.
A iniciativa levanta várias questões sobre a natureza republicana do sistema político brasileiro. A ministra Ideli Salvatti, das Relações Institucionais, tentou justificar o sigilo em nome do "interesse do Estado e da sociedade", mas omitiu o fato de que o Artigo 5º. da Constituição estabelece os direitos dos cidadãos à informação sem margem a dúvida, apenas ressalvando os casos imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado. A questão aqui consiste em saber em que a segurança da sociedade pode estar ameaçada pelas obras previstas. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, considerou "absurda, escandalosamente absurda", a MP aprovada e sinalizou com a possibilidade de a decisão ser barrada pela interposição de uma ação direta de inconstitucionalidade.
O episódio mostra que talvez tenha chegada a hora de o País reexaminar as condições em que está funcionando o presidencialismo de coalizão. A governabilidade é importante, sem duvida, mas não pode operar ao custo da autonomia do Legislativo e dos partidos políticos. Queiram ou não, os líderes democratas terão de enfrentar questões espinhosas se quiserem resolver o dilema. Primeiro, as exigências de governabilidade podem impor limites ao direito da sociedade de saber o que o governo está fazendo em seu nome? Segundo, o Congresso Nacional pode se submeter sempre tão docemente à coalizão majoritária, abrindo mãos de suas funções de fiscalização e de controle do Executivo, sem se dar ao cuidado de examinar os riscos de corrupção e fraude? E, finalmente, diante de sua condição de força minoritária, a oposição pode limitar seu protesto ao âmbito do Congresso?
Para resgatar a política dos desvios a que ela foi submetida nos últimos anos, talvez tenha chegado a hora de os políticos democratas levarem o debate para as ruas, as organizações profissionais e as universidades. A experiência internacional mostra que, quando os problemas chegam ao ponto a que chegaram no Brasil, a pressão da sociedade é uma saída benéfica.
JOSÉ ÁLVARO MOISÉS É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA DA USP E AUTOR DO E-BOOK O PAPEL DO CONGRESSO NACIONAL NO PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO