O tema da revisão da Lei de Anistia, para enquadramento dos que praticaram tortura ao tempo do regime militar, encerrado há 25 anos, voltou à ordem do dia.
O ponto agora é que a Advocacia Geral da União (AGU), por força de suas atribuições institucionais, assumiu a defesa formal do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado de comandar uma célula do regime que praticava a tortura.
Como o coronel era uma figura do Estado, acusado de um delito enquanto agente estatal, a AGU tem a obrigação institucional de representá-lo em processo dessa natureza. E ele reclamou essa prerrogativa. O ministro da Secretaria dos Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, e o da Justiça, Tarso Genro, reagiram.
Querem que a AGU recuse a defesa, o que significaria desobedecer seu estatuto. A discussão passa por cima do essencial: a Lei de Anistia. Ela, goste-se ou não, revogou aqueles crimes.
A condenação moral está dada: os personagens identificados como torturadores ou patronos deles, estão alijados do processo político há muito tempo. Mas a condenação penal está impedida pela Lei de Anistia. A lei que considerou tortura como crime imprescritível é posterior, de 1997 (a de anistia é de 1979). E há um princípio legal segundo o qual uma lei não retroage para prejudicar. Portanto, o coronel está coberto por ela – mais uma vez, goste-se ou não disso.
Mexer na Lei de Anistia significa quebrar um pacto político que tem propiciado um quarto de século sem a intervenção dos militares na política. É o mais longo período de absenteísmo militar da história republicana brasileira, o que mostra a eficiência daquele pacto. Os perseguidos do regime militar estão hoje no poder e têm as Forças Armadas, seus adversários de então, sob controle.
Mudar esse panorama, em nome do que quer que seja, é, acima de tudo, burrice. Esse é também o raciocínio de um ilustre ex-exilado, o cientista político, escritor, jornalista e professor Luiz Alberto Moniz Bandeira.
Biógrafo de João Goulart, a quem acompanhou no exílio, e autor de vasta obra no campo da historiografia política – entre as quais o monumental “Formação do Império Americano” -, Moniz Bandeira pode ser acusado de qualquer coisa, menos de ser um conservador (o que, diga-se, não o deslustraria).
Pois bem: em entrevista à revista Cult, que está nas bancas, ao ser indagado sobre a circunstância de o Brasil, ao contrário de seus vizinhos sul-americanos, não ter punido os que torturaram, responde o seguinte:
“Não faz sentido pretender a revisão da Lei de Anistia, reabrir feridas cicatrizadas, depois de quase 30 anos. E não se pode comparar o regime militar no Brasil com o que foi implantado na Argentina e no Chile, onde houve milhares de mortos e desaparecidos. No Brasil, houve torturas, abuso de direitos humanos, mas em escala muito menor que nesses outros países. Claro que não podem ser justificados, mas uma lei de anistia não pode ser parcial. Se houve anistia para os que se rebelaram, empunharam armas contra a ditadura, seqüestraram diplomatas e outros crimes políticos, a lei não pode excluir do benefício os que empreenderam a repressão.”
Moniz sabe bem do que fala. Acaba de publicar longo estudo sobre os regimes militares da América Latina, nas décadas de 60 e 70 – “Fórmula para o Caos – A Derrubada de Salvador Allende”. O ministro Tarso Genro, que já foi desautorizado pelo presidente Lula nessa iniciativa, e o ministro Vanucchi, deveriam lê-lo.
Se estão efetivamente preocupados com os direitos humanos, devem intervir nas delegacias de polícia de todo o país, que praticam rotineiramente a tortura. Como não há o mesmo glamour político quando se trata de gente anônima e sem recursos para dispor de um advogado, opta-se por revolver o passado.
Não há dúvida de que a tortura constitui uma anomalia, que merece condenação moral permanente, o que nenhuma lei é capaz de impedir (e não está impedindo). Mas, fabricar uma crise política, com vistas a uma conjuntura de três décadas atrás, enquanto a conjuntura presente já oferece desafios mais que suficientes, é inexplicável, a não ser pela lógica do factóide.
Anistia é “perpétuo esquecimento”. É irrevogável, o que não exclui o que dela disse o impagável Barão de Itararé: é um perdão que o governo concede aos crimes que ele mesmo cometeu.