Antologia do Casseta Popular – marco da imprensa nos anos 80 – revela um humor mais explosivo que o do Casseta & Planeta
Marcelo Bortoloti
ESCRACHO TOTAL Capas históricas da Casseta Popular: a campanha do macaco Tião, a ministra dominatrix e Bussunda parodiando a foto famosa de Demi Moore grávida |
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O ano era 1978, o presidente do Brasil era o general Ernesto Geisel e o país vivia em ritmo de distensão lenta, gradual e segura. Na Faculdade de Engenharia da UFRJ, em meio a panfletos e outras manifestações de um movimento estudantil que ensaiava seu renascimento, surgiu uma publicação mimeografada com a modesta tiragem de 100 exemplares e o título de Casseta Popular. Os editores eram Hélio de la Peña, Marcelo Madureira e Beto Silva, então com 20 anos de idade e um humor iconoclasta que rapidamente caiu no gosto do público universitário. O grupo, ao qual pouco tempo depois se juntaram Claudio Manoel e Bussunda, fazia piada de crioulo, judeu, anão, aleijado. Parte desse humor sem pruridos, que fez da revista um sucesso editorial com tiragem de 100 000 exemplares no meio da década de 1980, foi reunida agora na Antologia Casseta Popular (317 páginas; 70 reais), organizada pelo jornalista Arthur Dapieve e lançada neste mês pela editora Desiderata.
O sucesso da Casseta rapidamente ultrapassou os limites da universidade e fez do grupo um fenômeno de popularidade na Zona Sul carioca – algo que nenhum deles imaginava que pudesse acontecer. Helio de la Peña afirma que o objetivo primeiro dos cassetas era chamar a atenção das poucas moças que optavam pelo curso de engenharia da UFRJ. "Não éramos bonitos, não sabíamos tocar violão, não éramos surfistas. Precisávamos de algum diferencial", diz. A razão de tamanha receptividade é que o tipo de humor que eles faziam foi um sopro de renovação num período em que a censura baixava a guarda gradualmente, tanto no campo político quanto moral. A publicação encontrou um Brasil ávido por exercer a liberdade de expressão sob qualquer aspecto. Em comparação com o Pasquim, expoente da geração anterior, a Casseta era ainda mais escrachada, debochada e anárquica.
Entre as piadas impagáveis dos cassetas, encontra-se esta definição de mulher de esquerda, uma explosiva mistura de incorreções políticas: "A mulher comunista não se depila. É ideológico. Elas acham que, para acabar com essa idéia de que toda mulher bonita é burra, só tem um jeito, ser feia e inteligente", analisavam, tendo como alvo as "companheiras", muitas amigas do grupo. Quando as organizações de proteção ao meio ambiente começaram a ganhar destaque no país, eles lançaram o movimento "Sting nunca mais", pregando a morte das baleias e o fim da demagogia ecológica. Em outro momento, para responder à campanha "Vá ao teatro", das décadas de 1970 e 80, produziram a camiseta "Vá ao teatro, mas não me chame". A Casseta não se detinha nem diante de grandes tragédias. Logo depois do naufrágio do Bateau Mouche, publicou um jogo no qual o objetivo era afundar um barco e ganhar a maior quantidade possível de dólares.
A organização da antologia lidou bem com a previsível dificuldade do humor excessivamente datado. Conservaram-se as piadas que marcaram época, e as que lidam com personagens da vida política que não foram esquecidos "na latrina do passado", para usar uma expressão de Dapieve. A Casseta, por exemplo, entrou para o folclore das campanhas eleitorais cariocas ao lançar a candidatura de um chimpanzé na disputa pela prefeitura. Foi em 1988, quando havia um descrédito generalizado em relação aos políticos, e boa parte da população pretendia anular o voto. O macaco Tião, do Zoológico do Rio, foi apontado como opção melhor que os outros candidatos, "porque já nasceu preso". Recebeu 9,5% dos votos, ficando em terceiro lugar na disputa. O governo Collor deu farto material à Casseta Popular. A revista despertou o ódio de Zélia Cardoso de Mello, a poderosa ministra da Economia, com uma capa em que ela aparecia vestida de dominatrix, com chicotinho e tudo, ao lado de uma chamada que dizia: "Louca por um arrocho: ministra quer tirar o atraso". Depois da histórica entrevista de Pedro Collor a VEJA, que representou o primeiro passo para o impeachment de seu irmão, o presidente da República, a dupla foi tratada assim: "Desde pequenos já eram unha e carne: unha de um na carne do outro".
A Casseta foi o embrião do que veio a se tornar o grupo Casseta & Planeta. A outra metade surgiu em 1984, o jornal O Planeta Diário, criado pelos remanescentes do Pasquim Hubert Aranha, Reinaldo Figueiredo e Cláudio Paiva (este último não entrou para o Casseta & Planeta e atualmente é roteirista de A Grande Família). Apesar de serem publicados pela mesma editora a partir de 1986, os dois veículos tinham tons diferentes. A Casseta era mais escrachada, carregada de palavrões e piadas de teor sexual. O Planeta tinha uma linha mais sutil e focada em notícias de jornal. Em 1992, quando o grupo estreou seu programa próprio na Rede Globo, decidiu também fundir as duas publicações, dando origem à revista Casseta & Planeta, que durou apenas três anos. "Não iríamos nos vender ao sistema por meia dúzia de dólares. Até que veio a Rede Globo e ofereceu bem mais que isso", brincavam na época.
A fórmula que os consagrou por escrito foi levada para a televisão. E continua até hoje, embora um tanto desgastada e prejudicada pela morte de Bussunda, em 2006. O programa, em rede nacional, tem média de 27 pontos de audiência, resultado bom para o horário, mas em queda se comparado com anos anteriores. Além da TV, os cassetas faturam 2 milhões de reais por ano com publicidade, filmes, discos e livros que volta e meia aparecem na lista dos mais vendidos. Pena que, com todo esse arsenal, não tenham se renovado. Na TV, o grupo tem bons momentos. Criou bordões divertidos, as Organizações Tabajara, as paródias de novelas. Mas o humor surpreendente da revista da faculdade virou coisa do passado.
IDEOLOGIA CABELUDA Bussunda, Helio de la Peña, Beto Silva e Claudio Manoel: "A mulher comunista não se depila" |