"Obama pode inspirar o verdadeiro desenvolvimento,
aquele com sustentabilidade moral, em que os talentos
não vazam pelo imenso ralo da falta de oportunidades"
O célebre seriado 24 Horas da TV americana trazia como personagem um presidente negro, o que assegurava aos admiradores desse tipo de entretenimento de ficção a certeza de alta qualidade, em face do inusitado. Todos os fatos que contrariam aquilo que se tinha por perfil ideal de um presidente americano, contraditoriamente, parece que somaram a favor de Obama. Com a separação precoce dos pais, ganha um padrasto oriental e vai viver na Indonésia, país asiático distante e remoto, e posteriormente retorna, ainda criança, para ser criado por um casal de idosos brancos – seus avós maternos.
Esse legítimo Ph.D. em diversidade humana vai depois estudar em duas universidades de ponta de seu país, Columbia e Harvard, onde conviveu com parte importante da elite branca dos Estados Unidos.
Toda essa exuberante diversidade com a qual Obama teve contato ao longo de sua vida parece tê-lo inspirado a ser o tipo de líder que é hoje. Aliás, a diversidade parece ter sido eleita a bola da vez no campo das relações humanas. Ou seja: vem-se estimulando no mundo a capacidade de conviver com pessoas e culturas diferentes e de valorizar essas diferenças, em vez de estabelecer uma hierarquia entre elas. Ao analisar a trajetória de Obama, tem-se a impressão de que ela foi preparada com zelo didático para os desafios deste início de milênio. As guerras existentes hoje no mundo são mais culturais e étnicas do que ideológicas, o que exige lideranças capazes de lidar com desafios diferentes daqueles enfrentados durante a Guerra Fria e que ainda inspiram políticos como John McCain.
Uma pergunta que não se faz no Brasil: o fenômeno Obama seria possível sem as políticas de inclusão sociorraciais que foram implementadas nos Estados Unidos?
Os analistas de todo o mundo, e em particular os do Brasil, não têm conseguido compreender muito bem como um povo que viveu décadas de apartheid racial após a escravidão, cujo término custou uma sangrenta guerra civil, pôde em um tempo tão curto eleger uma figura com o perfil de Barack Obama à Presidência.
Não se deve esquecer, todavia, de que há ainda uma questão racial importante naquele país. Ora, se lá o problema existe, como explicar o fenômeno Obama? A questão central é que lá se reconhece haver o problema. Isso quer dizer o seguinte: há integração profissional e econômica nos Estados Unidos. Brancos e negros dividem os postos na política, nas empresas, nas escolas e, de forma especial, na mídia. Será possível dizer, com razão, que essa integração não se dá ainda na vida cotidiana. É possível mesmo especular que tão cedo isso não ocorra lá.
Barack Hussein Obama é filho legítimo da era das ações afirmativas implementadas a partir dos anos 60 nos Estados Unidos – ele nasceu em 1961. As ações afirmativas foram políticas de preferência no sentido de beneficiar a quem no passado não tinha obtido as mesmas oportunidades. Foram e ainda são essas políticas que possibilitaram a milhões de afro-americanos o acesso aos estudos e ao trabalho.
Quando Obama fala em mudança – change –, intuitivamente se sabe que a sua própria trajetória e origem já são partes importantes dessa mudança. A sociedade americana entendeu que uma pessoa com o perfil de Obama estava mais apta do que McCain para fazer as mudanças de que ela necessita.
A pergunta-título deveria ser formulada de maneira invertida: o que o Brasil tem a ver com Obama? Não o Brasil dos acadêmicos, desconectados do Brasil de carne e osso, tampouco o país do "faz melhor", campeão da produtividade e detentor de um sem-número de certificações de qualidade. O mundo tende a ser uma imensa commodity, o que exige fazer o melhor – sim –, mas da melhor maneira. Isso é que fará, cada vez mais, a diferença. Fazer o melhor da melhor maneira é crescer sem desperdiçar talentos – quaisquer talentos. Aliás, nenhum país pode, como o Brasil, impunemente, desperdiçá-los. Reiteradamente, o relatório anual do Banco Mundial nos classifica como os detentores da maior desigualdade do planeta. Segundo o banco, o tamanho desse fosso é uma perigosa armadilha contra a nossa sustentabilidade.
Helio Santos
é diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Diversidade (IBD)