Carolina Romanini
Divulgação |
Escala da ansiedade Cena do filme Missão: Marte, de Brian De Palma: a aflição dos personagens é muito menor do que na vida real das missões espaciais |
No filme Missão: Marte, do diretor americano Brian De Palma, quatro astronautas são enviados a Marte em 2020, na primeira missão tripulada do homem ao planeta. Antes de embarcarem na nave que os levará, eles expressam apreensão e ansiedade quanto à tarefa à sua frente. Controlar essas emoções a bordo seria o maior desafio numa viagem de tal magnitude. Essa é a versão do cinema dos males que afligem os astronautas. Na vida real, o quadro é bem pior. Submetidos a longos períodos de isolamento no ambiente inóspito do espaço, os astronautas estão sujeitos a uma infinidade de reações adversas, tanto físicas quanto psicológicas. Por mais bem treinados que sejam em terra, são vítimas de distúrbios como irritabilidade, depressão e stress. Não são poucas as missões tripuladas ao espaço em que se registraram alterações de comportamento na tripulação. Astronautas que embarcam juntos como bons colegas passam a não aguentar a presença uns dos outros, como aconteceu na estação espacial russa Salyut 7 durante um confinamento de 211 dias. Por exaustão, tripulantes cometem erros grosseiros, como desconectar cabos importantes do sistema de navegação, o que ocorreu na estação Mir em 1997.
Superar as alterações psicológicas causadas pela longa permanência no cosmo é um dos desafios dos programas de exploração espacial. Para melhor estudar essas alterações, a Nasa, agência espacial americana, a ESA, sua equivalente europeia, e a russa Roscosmos costumam realizar experiências de confinamento em terra dos astronautas. A mais recente delas, ocorrida entre março e julho, teve como objetivo preparar um dos próximos passos que se anunciam na aventura humana no cosmo – uma viagem tripulada a Marte. Um piloto de avião francês e um engenheiro alemão permaneceram isolados durante 105 dias num complexo erguido em Moscou pela ESA e pelo Instituto Russo de Problemas Biológicos especialmente para esse fim. O complexo simula, em parte, a estrutura da nave que seria usada para a viagem a Marte. Tanto o piloto quanto o engenheiro saíram da experiência queixando-se de pressões insuportáveis decorrentes do stress de passar tanto tempo num ambiente apertado. Esse resultado reproduz um fenômeno que costuma ocorrer nas missões que combinam tripulantes de diferentes nacionalidades – o choque de culturas às vezes é inevitável e resulta em tensões de parte a parte. Em 2000, numa simulação de confinamento com duração de 110 dias feita em Moscou com oito participantes de diferentes nacionalidades, uma tripulante canadense acusou o comandante da missão, russo, de ter tentado beijá-la à força. Na mesma missão, dois cosmonautas russos trocaram socos e pontapés num momento de tensão exacerbada.
ESA |
Verde no vazio Estufa no complexo de Moscou feito para simular voos a Marte: teste de resistência |
A ESA anunciou há pouco que, no ano que vem, uma nova experiência de confinamento será feita no complexo erguido em Moscou. Desta vez, os tripulantes ficarão isolados por 520 dias. A intenção é chegar mais perto da duração real de uma missão a Marte, que levaria dois anos e meio entre a ida e a volta. Segundo os cientistas que estudam as pressões psicológicas sofridas pelos astronautas, uma missão a Marte produziria alterações ainda mais intensas. Uma delas seria decorrente de algo que nenhum astronauta até hoje experimentou: a falta de visão da Terra. "Olhar em volta e não enxergar o nosso globo azul certamente causaria nos astronautas uma sensação de extremo isolamento, que pode ser muito perturbadora", disse a VEJA Nick Kanas, psiquiatra da Nasa responsável pelas avaliações psicológicas realizadas nos astronautas que retornam da Estação Espacial Internacional.
Fotos ESA |
Estudo das reações O centro de confinamento de astronautas em terra (à esq.) e um deles com eletrodos para medir a atividade cerebral durante o sono: monitoramento constante |
As primeiras avaliações do impacto das viagens espaciais sobre os astronautas foram feitas nos anos 60 durante os projetos americanos Mercury e Gemini. Tiveram como base os efeitos das radiações cósmicas e a permanência em gravidade zero. Verificou-se que os voos provocavam perda de hemácias no sangue e atrofia muscular e óssea. Posteriormente, no Projeto Apollo, que levou o homem à Lua seis vezes, constatou-se a ocorrência de tontura, enjoo, arritmia cardíaca, desidratação, perda de peso, redução da urina durante o voo e alterações na pressão arterial. Os distúrbios psicológicos nos astronautas, já então evidentes, puderam ser mais bem observados à medida que a permanência em isolamento foi se tornando cada vez mais longa, tanto no espaço quanto nas experiências de confinamento em terra. Se um dia a missão a Marte se concretizar, esses estudos ganharão uma dimensão inédita.