Política
Atenção: Perigo de Purgas
Em tempo de reentré, importa antes de mais notar que este ano ficará marcado precisamente por esta não existir. Não houve de facto interrupção da actividade política. Pelo contrário, o país até pode ter ido a banhos, mas novas medidas de austeridade foram anunciadas a um ritmo diário. Têm sido tantas e com tão vasto alcance que a opinião pública parece anestesiada perante o que está a acontecer. O estado de graça do actual Executivo tem-lhe permitido seguir à risca a velha máxima de fazer o mal depressa (e o bem, a ser feito, devagar).
O ataque ao défice tem sucedido, até ao presente, sobretudo com medidas de aumento da receita (vulgo impostos). Mas o corte na despesa, naturalmente mais complicado, começa também a dar os primeiros sinais. A extinção, fusão ou privatização de entidades da esfera pública, a redução do número de funcionários públicos e suas regalias e o recuo do Estado nos sectores sociais correspondem às grandes categorias nestes domínios. Importa sublinhar que tudo é feito em nome do corte no desperdício, das gorduras do Estado, como alguns chegaram a apelidá-lo. Mas à medida que se avança neste sentido, não deixa de ser curioso, mas sobretudo preocupante, o ambiente de purga que se instalou. O supremo álibi passou a ser a existência de abusos no caso das prestações sociais ou de mau funcionamento no caso das instituições públicas.
Peguemos então neste último exemplo. Subitamente, qualquer entidade pública com resquícios de mau funcionamento pode estar na mira da privatização, extinção ou ser alvo de cortes sérios. E tal acontece surpreendentemente sem gerar grande oposição por parte da opinião pública, que cai na tentação de considerar que tal constitui uma justa punição pelo “mau comportamento” das entidades em causa até ao presente. No fundo, num momento em que os cortes sucedem vindos de todas as direcções, acaba-se por esquecer a utilidade pública das entidades (p.ex. carácter social, estratégico para a economia ou para a coesão do território), para logo se admitir uma das referidas sentenças.
Veja-se o caso de algumas empresas públicas no sector dos transportes como a ANA, a Carris ou a CP. No caso da primeira, assume-se que os seus administradores ganham demais, no caso da segunda que o serviço prestado é deficitário e despesista e no caso da terceira junta-se a tais características os ordenados dos seus maquinistas constamente em greve. Mas em vez de se exigir a correcção de tais situações, caso se assuma a importância estratégica de tais empresas no domínio público, considera-se um problema menor ou um castigo merecido a privatização das mesmas.
Tomemos também como exemplo a prometida diminuição das emissões da RTP Açores e da RTP Madeira. São conhecidos alguns dos problemas de tais estações. Obterem níveis de audiência que justifiquem o seu financiamento revela-se um dos seus pontos críticos. Mas no clima actual, rapidamente se esquece a sua missão e importância nos contextos regionais para rapidamente se considerar que a diminuição das emissões é a consequência merecida por não estarem a cumprir bem o seu papel.
É neste contexto de estranhos paradoxos que uma grande vaga de políticas de índole liberal se tem desenvolvido sem ainda ter encontrado resistências significativas. E é sabido que mais do que procurar uma redução da despesa, a diminuição da intervenção do Estado em diversas esferas económicas e sociais assenta em claras opções ideológicas com limitado impacto nas contas públicas. Beneficiando de apatia, resignação, mas também de muita desorientação, o actual Executivo vai conseguindo dar sólidos passos para desmantelar o modelo de Estado Providência que, bem ou mal, entre nós é preconizado há décadas.
Artigo publicado hoje no Açoriano Oriental
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