Cadê a confiança que estava aqui?
Política

Cadê a confiança que estava aqui?



Especial O abalo de Wall Street

A intervenção sem precedentes do governo americano no
mercado foi crucial e necessária para sanear o capitalismo 
financeiro. Ele renascerá em bases novas


Marcio Aith

Joshua Lott/Reuters

A CARA DA CRISE
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A reação sem precedentes do governo americano para estancar a sangria em Wall Street fez o mundo lembrar-se, como só ocorre de tombos em tombos, de que o capitalismo não depende só de capital e de risco. Capitalismo é como futebol. Sem regras é pelada. Com regras é competição e negócio. A principal regra do capitalismo em sua versão financeira é a manutenção da confiança. Confiança em que os bancos são porto seguro para investimentos. Confiança em que a probabilidade de calote de um determinado consumidor é justamente aquela descrita por análises de crédito. Por último, confiança em que, por pior que seja uma tormenta financeira alimentada pela quebra de confiança, há soluções, ainda que inacreditavelmente caras e engenhosas, capazes de restaurar... a confiança. Foi o que provaram na última sexta-feira o presidente americano, George W. Bush, e seu secretário do Tesouro, Henry Paulson, em um anúncio que retirou da lama o ânimo dos investidores. Ao longo de uma única semana, bolsas de valores e outros ativos financeiros, no mundo todo, foram do desespero à euforia – sem estado interme-diário. A semana teve início sanguinolento, com o temor de que os bancos americanos caíssem um após o outro, como num dominó. As ações tiveram o seu pior dia desde os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Na sexta-feira, depois do anúncio do plano de resgate financeiro, o valor das ações disparou. A Bovespa subiu 9,6%, a maior alta em nove anos, e o Dow Jones teve valorização de 3,4%. Ainda é cedo para decretar o fim da crise. Mas já se percebe o entorno de sua solução.

Kevin Lamarque/Reuters

UM PACOTE SEM PRECEDENTES
O secretário do Tesouro, Henry Paulson: ajuda do tamanho da crise

A idéia de Henry Paulson é repetir com adaptações a solução dada à crise imobiliária de 1989, quando o Congresso americano criou uma empresa para absorver, e depois revender no mercado, papéis podres que entupiam os canais normais de crédito para empresas e consumidores. Portanto, ponha as barbas de molho quem esperava dirigismo estatal ou socialização do sistema. Isso não existe. Naquela ocasião, a limpeza custou para os contribuintes 125 bilhões de dólares, muito menos do que se receava de início. A conta agora será maior, dada a pulverização dos instrumentos financeiros exóticos que inflaram a bolha financeira mundial. Senadores americanos já falam em 1 trilhão de dólares. Economistas, em 5 trilhões de dólares. Deve ficar mesmo entre 1 e 2 trilhões. "O valor precisa ser grande o suficiente para fazer diferença e atingir o centro do problema", disse o secretário. Pacotes de socorro patrocinados por governos e bancos centrais costumam gerar críticas das mais diferentes espécies. Contribuintes reclamam do uso de dinheiro público. Especialistas, por sua vez, temem que os pacotes de socorro exacerbem o comportamento irracional. Isso porque, estimulados a pensar que serão sempre salvos, investidores, acionistas e executivos tenderiam a manter as mesmas práticas que os levaram ao buraco. Essa teoria, conhecida como risco moral, nasceu com o setor de seguros, no século XVII. Imaginava-se que, quando uma companhia fosse protegida contra incêndios, ela abandonaria medidas de prevenção. A expressão foi logo adaptada ao setor financeiro e usada para criticar praticamente todas as intervenções econômicas de que se tem notícia – em 1998 e 2002, por exemplo, o governo americano foi severamente criticado por orquestrar dois pacotes de socorro à economia brasileira.

Vincent Laforet/The New York Times

A PRIMEIRA VÍTIMA
Stanley O’Neal, ex-CEO do Merrill Lynch: no olho da rua


Desta vez, o fato de os americanos, maiores apologistas do livre mercado do planeta, terem recorrido à intervenção estatal incitou a galhofa da esquerda nos quatro cantos do planeta – no Brasil inclusive. Entre as elucubrações mais comuns esteve a de que, triturados pela engrenagem caótica do capitalismo, os Estados Unidos partiriam para algo similar à estatização dos ativos financeiros. Nada disso. Tome-se o caso da seguradora AIG. Seu controle acionário foi apenas provisoriamente colocado nas mãos do governo, e um executivo de mercado de seguros foi chamado para administrá-la. A companhia será revendida na primeira oportunidade, inteira ou em partes. O governo, por outro lado, não viu necessidade de salvar o Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimentos dos EUA. Já o Merrill Lynch, o terceiro, foi vendido sem a ajuda oficial. Seus executivos perderam o emprego.

Como em todo dilema econômico, operações de resgate têm custos e benefícios. Calcula-se que o benefício do pacote anunciado por Paulson superará – e muito – o custo da inação. "Não estamos tratando de salvar instituições", disse a VEJA Ed Truman, ex-diretor do Fed americano. "A perda de alguns credores foi, de fato, amenizada. Mas muitos acionistas e funcionários perderam seus empregos. É o custo de proteger o sistema financeiro como um todo. Tomem como exemplo o pacote de ajuda ao Brasil em 1998-1999. Talvez o país merecesse; talvez não. Mas foi muito benéfico para o sistema financeiro internacional salvar o Brasil." Guardadas as devidas proporções, não é diferente desta vez. Agora como naquele período, a questão central é restaurar confiança no sistema de mercado, e não acabar de vez com ela.

 

Com reportagem de Renata Moraes





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