Comemorar juros tão altos assim é esquisito. Qualquer país acharia isso. Mas nós não somos qualquer país e só nós sabemos de quantas esquisitices nos livramos e ainda temos de nos livrar. Ontem foi mais um daqueles dias de atravessar fronteiras e dar mais um passo para ser um país normal. Os juros, em um dígito, ainda são um dos mais altos do mundo, mas, felizmente, eles caem.
Juros, juros, juros. Essa é uma conversa sem fim no Brasil. Juros podem ser os da Selic, que é a conta paga pelo governo nos seus papéis. Podem ser os juros das empresas, dos descontos de duplicatas; podem ser os das pessoas físicas, do crédito direto ao consumidor. Podem ser até os do crédito rotativo dos cartões e os do cheque especial, os spreads bancários. Taxas diferentes e todas absurdamente altas.
Que governo, com superávit primário, respeito aos contratos, redução de dívida pública, está pagando 9,25% ao ano para rolar seus papéis, em títulos com liquidez diária? Só mesmo o Brasil. E essa taxa parece diminuta perto dos juros pagos pelas pessoas físicas e empresas nos seus empréstimos junto ao mercado bancário.
Ainda há uma longa caminhada antes do dia em que poderemos dizer que nossos juros são normais, como nossa inflação passou a ser. Mesmo assim, ontem foi um dia histórico. A menor taxa da era do Real. Economistas que ouvimos na coluna só se lembram de taxas assim nos anos 70.
Esta semana, ouvi o presidente Lula defendendo o câmbio flutuante e contando o que diz para quem vai lá em seu gabinete reclamar do câmbio baixo ou alto:
- Pergunto se eles querem me propor a centralização do câmbio. Ninguém quer. É isso gente, câmbio flutuante, flutua.
Me lembrei da época em que no programa do PT havia a defesa explícita de controle cambial, centralização cambial. Medidas até mais exóticas.
Ouvi também o ministro Mantega falar com orgulho do real, como moeda que hoje é uma das mais negociadas no mundo. Lembrei do tempo em que integrantes do atual governo acusaram o real de ser "eleitoreiro".
Nas duas cenas tive a mesma sensação: a de amadurecimento do país.
O debate continua. Hoje é pela qualidade dos gastos, a melhor forma de reagir à crise, a falta de uma reforma tributária - adiada por todos os governos - o alto custo trabalhista que vem do Varguismo. Parece um país engasgado com obstáculos que não consegue remover. E pur si muove.
O melhor do dia de ontem é que a queda dos juros para menos de 10% não foi apenas uma encomenda de ocasião, provocada pela crise internacional. É um momento de uma longa caminhada até uma economia estabilizada. Não quero tirar o mérito de ninguém, mas sei que nenhum governo sozinho pode se atribuir todos os avanços. Os governos se complementaram apesar de adversários na arena política. Arena? Eu disse Arena? Melhor esquecer essa palavra que lembra uma esquisitice política, e aqui, neste espaço, quero ficar apenas nas econômicas.
Há uma grande chance - e essa é a melhor notícia - de que os juros fiquem em um dígito por um bom tempo. O Brasil foi fincando estacas no caminho que leva a esta conquista. Tem ainda muitos entulhos: muito crédito direcionado, muitos juros subsidiados, muitos preços para o dinheiro; atalhos criados para fugir das taxas cronicamente altas e que acabaram ajudando a mantê-las altas. As grandes empresas, no BNDES, pagam juros de um dígito há muito tempo. Uma coisa estranha assim: uma grande empresa brasileira pega empréstimo a 6% ao ano e empresta ao governo, até ontem, a 10,25%. O melhor negócio é ser grande, pegar dinheiro no BNDES e emprestar para o Tesouro. A TJLP é uma forma de reduzir o custo de capital para o investimento, mas é um contorcionismo. Esquisitice.
Depois quando voltar a crescer, o Brasil terá que subir novamente os juros para acima de 10%? Há boas chances de que não. Há espaço para crescimento não inflacionário. O país passou por uma alta recente do dólar sem o repasse para a inflação. Nunca antes.
Há mais dúvidas. Os poupadores continuarão poupando com juros que na mentalidade brasileira não são compensadores? Deixaremos o dinheiro aplicado em fundos de renda fixa com as taxas baixas para os nossos padrões? Os fundos de pensão já foram autorizados a correr mais riscos, os investidores estão ficando inquietos. O dinheiro "não está rendendo", como se diz no Brasil.
Para crescer, o país precisa investir, e para isso precisa aumentar sua taxa de poupança, cronicamente baixa. Mas para isso precisa mudar seus conceitos do que seja rentabilidade do dinheiro. Os bancos precisam parar de torturar os números para que eles confessem algo inaceitável: que os altíssimos spreads brasileiros fazem algum sentido. Não fazem não. São parte do entulho inflacionário que o Brasil vai deixando para trás lentamente. Esquisitice.
Os juros? Eles continuam altos em qualquer medida, mas ontem a taxa básica que remunera os títulos públicos, a notória Selic, atravessou uma linha imaginária que já pareceu ao Brasil um muro intransponível.