Política
É a ideologia, estúpido!
As ideologias continuam a desempenhar um papel importante no enquadramento do combate político nos países democráticos. Podem naturalmente apresentar-se de forma mais ténue do que o desejável, sobretudo no centro político, mas continuam a orientar de algum modo o discurso e a acção política. E em momentos de crise como os actuais, em que opções diversas têm de ser tomadas, a ideologia ganha uma nova centralidade. No entanto, como é evidente, os actores políticos não assumem desde logo a dimensão ideológica das suas acções. Apresentam-nas, pelo contrário, orientadas por critérios de eficiência, de harmonização, de justiça ou de melhoria das condições para os cidadãos, por exemplo.
Neste sentido, tem sido particularmente interessante verificar como o actual Executivo tem conseguido aplicar toda uma agenda de reformas profundamente ideológicas nos mais diversos setores. A ideologia liberal é latente quando se procura, por exemplo, fazer recuar o Estado na esfera económica ou quando se flexibiliza ainda mais o mercado de trabalho. A aplicação de uma agenda profundamente liberal como forma de combate à crise é hoje algo que o próprio Governo nem se esforça por esconder. Mas é também a ideologia de uma direita conservadora que muito se faz sentir por estes dias em algumas áreas da governação. A este respeito, o setor da segurança social é particulamente rico para analisar esta questão.
Numa semana, conseguimos ver Pedro Mota Soares a anunciar poupanças radicais no rendimento social de inserção (RSI), ao mesmo tempo que garantia que não iria mexer nos apoios à maternidade e que ia subir os apoios aos idosos. Trocado por miúdos, nada como aproveitar a crise para dar umas valentes machadadas no famigerado RSI, que só alimenta preguiçosos e delinquentes. Mas como bom homem de direita, o ministro não se cansa de apoiar a maternidade, defendendo assim a nobre família portuguesa. Nada também como apoiar os idosos, eleitorado potencialmente mais conservador e que consegue encontrar nesta direita do CDS alguns dos valores tradicionais que lhe são mais familiares. Claro que não se trata aqui de criticar o apoio à maternidade ou aos idosos, mas sim de descodificar o caráter ideológico das referidas opções.
E bem a propósito, nesta linha do conservadorismo político puro, foi também curioso ver Passos Coelho no Congresso do PSD Açores a falar na necessidade de “alterar estruturas económicas, políticas a sociais para que privilégios insjustificáveis não voltem a reposicionar-se na nossa sociedade”. O líder do PSD concretiza então dizendo que estas “estruturas perduraram ao longo de muitos anos e que mantiveram muitas vezes as pessoas na dependência do Estado e na pobreza. Dependentes, desde a criação de algumas prestações, da esmola que o Estado lhes dá.” Ou seja, o corte no RSI volta assim a ganhar destaque neste discurso do primeiro ministro.
Nesta linha do conservadorismo que utiliza a crise como alibi para acabar com alguns “desmandos sociais”, pouco depois do Governo tomar posse, também assistimos ao fim da comparticipação estatal na venda da pílula. Qualquer dia, temos este Executivo a querer acabar com as interrupções voluntárias da gravidez, ou com as aulas de educação sexual nas escolas, com o argumento de que temos de apertar o cinto... A crise é um momento onde a ideologia se faz sentir com particular intensidade. Não há mal nenhum nisso. Importa, no entanto, que os cidadãos saibam descodificar aquilo que lhes está a ser apresentado.
Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental
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