Onde enxergar é o horror
Ensaio sobre a Cegueira pode não ser o filme caloroso que
o público se acostumou a esperar de Fernando Meirelles.
Mas é exatamente o que deveria ser a adaptação
do grande romance de José Saramago
Isabela Boscov
Fotos divulgação |
A LUZ QUE NÃO ILUMINA |
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Certo dia, de um instante para outro, um homem fica cego – não uma cegueira de treva, mas de uma brancura intensa. Alguém o ajuda a chegar em casa, a mulher o leva ao consultório do oftalmologista, ele passa à frente dos outros pacientes que estão na sala de espera. Logo, todas essas pessoas perderão a visão também, numa onda de contágio que se alastra rapidamente por toda a cidade. Todas, menos uma: a mulher do oftalmologista, que misteriosamente preserva a visão. Quando os doentes são confinados pelas autoridades em um sanatório vazio, ela e o marido discutem se é o caso de anunciar aos outros que ela pode ver. Decidem não fazê-lo: à medida que mais e mais cegos são despejados ali, mais e mais se instala a conflagração. Nessa terra onde se disputa comida, se disputa território e, acima de tudo, poder, numa espiral descendente rumo à degradação, quem tem olhos não seria rei – seria, sim, feito escravo. O sanatório vai se tornar uma pocilga, em que os cegos tateiam pisando sobre seus próprios excrementos. A razão, representada pelo pequeno núcleo que tem na mulher do oftalmologista o seu centro, será suplantada pela selvageria dos cegos de outra ala, que tomam controle das provisões e só as liberam em troca de butim. Quando ninguém tem mais com o que barganhar, chega a vez de as mulheres desempenharem seu papel: ou elas se entregam ao estupro, ou elas e todos mais morrerão de fome. Esse quadro dantesco é o que a mulher do médico pode observar em detalhe a cada momento de cada dia – da mesma maneira que o leitor do romance do português José Saramago e o espectador da adaptação deste, também intitulada Ensaio sobre a Cegueira (Blindness, Japão/Canadá/Brasil, 2008), que estréia nesta sexta-feira no país.
Uma excelente adaptação, diga-se, tanto no entendimento do texto quanto na sua transposição para a tela – a única de um livro de Saramago além de uma produção holandesa de A Jangada de Pedra, já que o autor resiste a ceder direitos sobre a sua obra. Roteirizado pelo canadense Don McKellar (de O Violino Vermelho) e dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, Cegueira faz a opção inesperada, mas bem-sucedida, pelo registro naturalista. De um lado, ele facilita traduzir em imagens os aspectos abstratos do romance e permite que Meirelles tire proveito de um de seus grandes talentos, a filmagem em locação – aqui, São Paulo, Toronto e Montevidéu, captadas em luzes frias pelo diretor de fotografia César Charlone, compõem a cidade imaginária em que transcorre a história (como no livro, aliás, a parte da ação que se desenvolve nas ruas é mais envolvente do que a que tem lugar no sanatório). De outro lado, o tom naturalista acentua, por oposição, as características de parábola pretendidas por Saramago – sobre quem os homens são verdadeiramente quando julgam que suas ações não podem ser testemunhadas, e sobre como às vezes é preciso cegar-se para os códigos de sexo, idade e classe para enxergar quem são as pessoas com quem de fato é possível irmanar-se. Em meio ao horror do sanatório, alguns indivíduos encontram essa solidariedade: o oftalmologista e sua mulher (Mark Ruffalo e Julianne Moore), um casal de japoneses (Yusuke Iseya e Yoshino Kimura), um homem que já trazia uma venda em um dos olhos (Danny Glover) e uma prostituta (Alice Braga). Quando o grupo voltar às ruas e se confirmar que a cegueira não poupou ninguém, eles formarão uma espécie de clã ideal, livre das barreiras com que a humanidade se divide e se isola – uma idéia clássica de Saramago.
RECEPÇÃO FRIA |
Por ironia, em sua ainda breve carreira, iniciada em maio no Festival de Cannes, Cegueira tem sofrido em grande parte por causa de suas qualidades. Por exemplo, uma certa frieza e distância – mas, na obra de Saramago, embora as emoções sejam plangentes e fundas, elas se manifestam com a circunspecção tipicamente portuguesa do autor. A mulher do oftalmologista não vai demonstrar nenhum sinal de instinto maternal para com as pessoas que se vê obrigada a ajudar (pelo que a atriz Julianne Moore se diz muito grata, já que a exime de encarnar um velho estereótipo), e aqui não se encontrará também nenhum ato heróico além da própria sobrevivência. Para desconcerto de Meirelles, alguns jornalistas presentes em Cannes se queixaram a ele de que o oftalmologista não tivesse se aproveitado da imunidade da mulher para tentar elaborar uma vacina anticegueira, ou que o governo não tentasse encontrar uma cura para a epidemia. "Mas isto aqui não é Eu Sou a Lenda. É uma metáfora", explica – como se fosse necessário – o diretor, que, graças ao sucesso de Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel, não tivera ainda de lidar com acolhidas pouco hospitaleiras ao seu trabalho. Meirelles diz que o aprendizado, ainda que natural, não foi fácil, mas que pôde se consolar ao encontrar Saramago e receber a aprovação dele (leia texto abaixo). Ensaio sobre a Cegueira pode não ser o filme caloroso que o público se acostumou a esperar de Meirelles. Mas não desfigura uma obra literária única, razão por que merece a gratidão do escritor – e de quem assista a ele.
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