Entrevista Mauricio Funes
Política

Entrevista Mauricio Funes



"Chávez não é o modelo"

O presidente de El Salvador defende a estabilidade econômica
como um valor de esquerda e reafirma que não segue
o "socialismo do século XXI" da Venezuela


Lucila Soares

Rubén Gamarra
William R. Voss
"Para viabilizar a justiça social, é preciso apostar no crescimento e na estabilidade. Sem isso, não se produz a riqueza
para repartir"


O jornalista Mauricio Funes, de 49 anos, deu à Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, à qual se integrou há dois anos, sua primeira vitória desde 1992, quando a guerrilha esquerdista depôs as armas e se tornou um partido político. Assumiu em junho o governo de El Salvador, um país menor que Sergipe, mas com problemas gigantescos. Cerca de 30% dos salvadorenhos vivem nos Estados Unidos, e suas remessas são responsáveis por 18% do produto interno bruto de El Salvador. Com a crise inter-nacional, esses recursos minguaram, assim como as exportações para os EUA, que correspondiam a 50% do total. As primeiras medidas de Funes mostram uma visão de esquerda bem diferente da de Hugo Chávez, a quem seus adversários tentaram associar sua imagem durante a campanha eleitoral. Na semana que vem, ele chega ao Brasil para uma visita de dois dias. Além de estreitar a colaboração na área social, vem propor a criação, em El Salvador, de uma plataforma de exportação de produtos brasileiros. De sua residência, onde vive com a esposa, a brasileira Vanda Pignato, fundadora do PT, e o filho Gabriel, de 1 ano e 9 meses, Funes falou a VEJA.

Como o senhor define um governo de esquerda?
A grande questão da esquerda hoje é que não se trata mais apenas de fazer um governo popular, democrático e voltado para a distribuição justa da renda. Embora esta continue a ser a prioridade que nos diferencia dos governos de direita, para viabilizar a justiça social é preciso adotar um modelo que aposte no crescimento e na estabilidade macroeconômica. Sem isso, não se produz a riqueza que se pretende repartir. É preciso ser responsável, e isso significa contas em ordem e déficit público sob controle.

"Quero fazer de El Salvador uma porta de entrada de produtos brasileiros para os EUA, com quem temos um tratado de livre comércio. Isso pode ser muito interessante para o etanol"


Essa definição não combina com alguém que foi comparado ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, durante a campanha eleitoral. Qual é sua opinião sobre o "socialismo do século XXI" defendido por ele?
O modelo de Chávez corresponde a uma conjuntura específica da Venezuela e é inviável em qualquer outro país da América Latina. Durante a campanha eleitoral, nossos adversários nos apresentavam como uma esquerda que adotaria o modelo de Chávez. Eles pretendiam criar um horizonte de ameaça, de caos na economia. Mas eu sempre sustentei – na campanha e como presidente eleito – e reafirmo agora – como presidente constitucional – que não sou um seguidor de Hugo Chávez. Podemos estreitar a cooperação com a Venezuela, mas isso não significa aderir a seu modelo. Ele pode (ou não) funcionar lá, e serão os venezuelanos os responsáveis por julgá-lo. O que estamos fazendo em El Salvador segue outros paradigmas. Vejo com o maior interesse e simpatia os exemplos de gestão pública seguidos por outros presidentes da América Latina, como Lula, no Brasil, onde o estado tem papel planejador na busca de crescimento econômico, distribuição de renda e combate à pobreza.

O nacionalismo tem lugar nessa visão de esquerda defendida pelo senhor?
Os velhos nacionalismos que se construíram como oposição à integração com o mundo não têm nenhuma viabilidade. Muitas vezes, são reservas ideológicas destinadas a perpetuar alguns governantes no poder. É preciso abrir fronteiras, estimular a integração regional, inclusive com os Estados Unidos. Não faz sentido manter o discurso anti-imperialista que a FMLN tinha no passado, quando um terço dos salvadorenhos vive nos EUA. Para nós, trata-se de um parceiro estratégico, com o qual podemos enfrentar problemas comuns. Já tive a oportunidade de dizer ao presidente Barack Obama que comemoro sua política externa para a América Latina, na medida em que ela reconhece a necessidade de apoiar o desenvolvimento da região. E faz isso porque entende que a pobreza e a estagnação da América Latina representam uma ameaça à segurança interna dos Estados Unidos.

Às vésperas de completar 100 dias de governo, o senhor tem 84% de aprovação. A que atribui esse índice?
Fundamentalmente, à mudança na forma de exercer o poder. Fizemos um grande esforço para criar mecanismos que permitam ouvir todos os setores da sociedade. Nos próximos dias vou instalar o Conselho Econômico e Social, que é um fórum consultivo a partir do qual serão deliberadas as principais políticas públicas voltadas para o desenvolvimento econômico e social. Nunca houve nada parecido em meu país. Com isso, foi possível atrair para o projeto político do governo até eleitores que votaram na situação.

Que medidas concretas já foram tomadas para enfrentar a crise econômica em seu país?
Fiz um plano anticrise, que tem vários componentes. Mas o que já está em andamento é um plano de habitação social, em parceria com a Associação Bancária de El Salvador, que vai construir 27 000 casas e criar 100 000 empregos, diretos e indiretos. Também distribuímos um bônus às famílias mais pobres. Estamos investindo em saúde e educação. Chamo atenção para o fato de que boa parte dos recursos para esses programas vem do Banco Mundial (Bird) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), apesar de durante a campanha meus opositores terem afirmado que a vitória da FMLN significaria fuga de investidores e portas fechadas para El Salvador nos organismos financeiros multilaterais.

Por que isso não aconteceu?
Essa é uma ruptura de paradigmas das mais interessantes. A banca multilateral tornou-se aliada estratégica para financiar o desenvolvimento num país onde a esquerda sempre responsabilizou instituições como o Fundo Monetário Internacional, o Bird e o BID pelos problemas estruturais que tivemos nos últimos anos. A verdade é que os dois lados mudaram. Nossa visão de esquerda inclui fazer dessas instituições sócias do desenvolvimento. Isso é possível, também, porque esses organismos já se deram conta de que, se não dividirem conosco o problema da pobreza, da exclusão e da marginalidade, nosso país não será viável. Isso permitiu empréstimos em que os recursos não estão submetidos às condicionantes que havia no passado. Conseguimos firmar compromissos com o Bird e o BID com aumento substancial do gasto social, porque nos comprometemos com o equilíbrio fiscal.

Quais são os pontos principais da agenda de sua visita ao Brasil?
Além da continuidade de algumas parcerias importantes na área social, estou propondo uma parceria econômica estratégica ao Brasil. Quero fazer de El Salvador uma grande porta de entrada de produtos brasileiros para o mercado americano, oferecendo as vantagens que temos por força do tratado de livre comércio com os EUA. Isso pode ser particularmente interessante para o etanol, porque temos terras que poderiam ser usadas por empresas brasileiras para o cultivo da cana-de-açúcar e a produção de álcool. O etanol poderia entrar no mercado americano com preço muito mais competitivo do que o fabricado no Brasil, porque não teria de enfrentar nenhum tipo de barreira alfandegária. A mesma lógica pode ser seguida por empresas de outros setores, como a indústria têxtil. Temos interesse na infraestrutura e na criação de empregos que resultariam disso. E também planejamos acordos de transferência de tecnologia e formação de mão de obra.

"O combate ao narcotráfico em meu país começa no front interno, acabando com a cumplicidade e a corrupção na polícia, no Ministério Público e em outras esferas"


Além da crise econômica, El Salvador enfrenta problemas cruciais como o combate ao narcotráfico. Quais são suas prioridades nessa área?
No front interno, combater a cumplicidade e a corrupção em diversos escalões. Aqui, o narcotráfico conseguiu corromper a polícia, o Ministério Público e algumas instituições do governo anterior, que não teve vontade política de romper essas amarras. Estamos tratando de profissionalizar a polícia e de reforçar os mecanismos de inteligência policial. Mas temos consciência de que esse é um flagelo que atinge a todos os países do continente, e só pode ser enfrentado com uma política integrada.

O senhor é favorável à descriminação do consumo de drogas?
Não creio que esse possa ser um caminho. O problema do narcotráfico tem de ser atacado também pelo lado do consumo. Não se pode combater o narcotráfico tendo como alvos apenas os países que produzem a droga. É preciso combatê-lo também dentro dos países que consomem. Se não há demanda de droga, a produção cai. Por isso, em vez de descriminar o consumo da droga, é preciso investir em políticas preventivas voltadas para a juventude e ser ainda mais coercitivo, penalizando drasticamente o consumo.

O senhor foi eleito como candidato da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, um partido que por doze anos pegou em armas para derrubar o governo e que tem entre seus integrantes muitos ex-guerrilheiros. Como analisa hoje a ação da guerrilha em seu país?
O surgimento da luta armada em El Salvador foi provocado por razões objetivas. Fecharam-se os espaços de participação política. Foi a intolerância dos governos militares que levou as organizações sociais a seguir o caminho da guerrilha, considerado por muitos a única reação possível. Não estou expressando nenhuma simpatia pela luta armada. Naquele momento, o fim dos anos 70, eu era estudante e não acreditava na guerrilha como caminho para resolver os problemas do país. Mas perdi um irmão nessa guerra, que matou mais de 75 000 pessoas. Ele não era guerrilheiro, era apenas um líder estudantil. Por isso posso entender aqueles que não viram outra saída a não ser opor-se militarmente para buscar as transformações que o país requeria. E acredito que essa reação abriu espaço para as mudanças que tiveram lugar em El Salvador depois dos acordos de paz intermediados pela ONU a partir de 1992.

Sua opção profissional pelo jornalismo teve relação com a resistência democrática em El Salvador?
Minha escolha foi mais circunstancial. Eu era estudante de letras, mas tinha paixão por conhecer a realidade de meu país e, também, por cinema e televisão. Em meados dos anos 80 surgiu a oportunidade de um trabalho na TV, que permitiu juntar essas paixões. Pouco a pouco, fui me dando conta de que também se pode contribuir para transformar a realidade a partir do exercício do jornalismo. Entendi que num país como o meu, marcado pela pobreza, desigualdade e exclusão social, a única atitude ética aceitável para um jornalista era denunciar a realidade. Por isso transitei na direção de um jornalismo crítico que acabou me levando à política. Chegou um momento em que me dei conta de que o jornalismo não me permitira transformar a realidade. Como jornalista, mal ou bem continuaria sendo espectador da realidade.

Alguns setores da esquerda salvadorenha defendem a revogação da lei de anistia. Qual sua opinião sobre esse tema?
A lei de anistia foi aprovada pouco depois dos acordos de paz, para que todos aqueles que participaram da guerra pudessem ter atuação política sem o temor de ser condenados por haver violado direitos humanos. Foi o que as condições da época permitiam. Isso tornou possível que integrantes da FMLN tivessem participação na política democrática, assim como alguns chefes militares. Como presidente, não me cabe decidir se a lei de anistia deve ser revogada. Essa é uma prerrogativa do Legislativo. Dadas as condições em que vivemos, considero que não é o momento histórico oportuno para uma iniciativa do governo de alterar a lei. Tenho de trabalhar para criar condições de harmonia social, política e de governabilidade. A revogação da lei abriria a possibilidade de qualquer cidadão iniciar um processo contra aqueles que participaram da guerra. Isso vale tanto para chefes militares quanto para ex-comandantes da Frente que hoje são deputados, ou até fazem parte deste novo governo.




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