Petismo O Brasil exporta a "revolução" lulista
Política

Petismo O Brasil exporta a "revolução" lulista


da Veja

MODELO IMPORTADO
DO BRASIL

Depois de abandonar a guerrilha que deixou milhares
de mortos, a esquerda assume a Presidência da República
em El Salvador tendo Lula e o PT como modelos


Otávio Cabral, de San Salvador

Fotos Leonardo Wen/Folha Imagem e Edgar Romero/AP
ESPELHO
Mauricio Funes e Lula: ministros e assessores brasileiros envolvidos diretamente na campanha e na elaboração do plano de governo salvadorenho

Por doze anos, a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) manteve acesa uma sangrenta opção preferencial pela guerrilha com o objetivo de derrubar o governo e implantar o regime comunista em El Salvador. O conflito deixou um saldo de 75 000 mortos, dividiu o país e o mergulhou em uma profunda crise econômica, social e política. Nesta segunda-feira, dezessete anos depois de trocar as armas pelo palanque, finalmente a FMLN assume o poder. A festa da posse de Mauricio Funes, o novo presidente, marcará o triunfo da revolução que começou no século passado, embora pouco ou quase nada reste daquilo que os velhos guerrilheiros imaginavam como modelo de civilização. Fidel Castro e Che Guevara, os líderes que inspiravam as ações violentas do grupo no passado, serão citados como referências históricas de um tempo que já se foi. O destaque da festa será o presidente Lula, que encontrará um cenário muito familiar na menor nação continental da América Central. Para vencer a eleição, a FMLN abandonou o discurso radical, fez alianças com políticos antes hostilizados, firmou compromisso público de que não haveria rupturas econômicas e se comprometeu com ações que vão priorizar a parte mais pobre da população. Alguma semelhança com a campanha do PT em 2002? Toda.

O modelo brasileiro não só inspirou como ajudou a eleger o novo presidente salvadorenho. A FMLN, assim como o PT, surgiu em 1980, como a principal força de oposição a um governo militar. Derrotada no campo de batalha, a FMLN desvestiu a farda e aderiu ao jogo eleitoral democrático. Apareceu à luz do dia dividida em tendências, refratária a alianças, com uma ala ainda nostálgica da luta armada e prometendo desmontar a política econômica capitalista quando chegasse ao poder. A Frente, a exemplo do PT, também foi derrotada em três eleições presidenciais seguidas. Exatamente como o PT, os salvadorenhos perceberam que sem uma reforma interna não chegariam a lugar nenhum. El Salvador ainda é um país polarizado entre o que se convencionou chamar de direita e esquerda, e muitas de suas forças políticas vivem como se o mundo estivesse sob a Guerra Fria. Mas a maioria da população já chegou ao século XXI. Na campanha, os adversários de Mauricio Funes tentaram associar sua imagem à de Hugo Chávez e à de Fidel Castro – e assim caracterizá-lo como a ameaça comunista. Não colou. Usar o exemplo do Brasil foi o antídoto escolhido pelos ex-guerrilheiros para atrair parte do empresariado e do eleitorado tradicional da direita. "Lula é um modelo e um exemplo para mim", disse o presidente Funes na semana passada a VEJA, no escritório do governo de transição, em um hotel de luxo em San Salvador. "Da mesma maneira que Lula, eu sei que não é possível fazer um governo sectário, rompendo com tudo o que já foi feito no país. É preciso governar com toda a sociedade para que El Salvador supere sua grave crise econômica."

Susan Meiselas/Magnum/Latinstock
SEM TIROS
A guerrilha da FMLN lutou durante mais de uma década para implantar o comunismo em El Salvador: vitória nas urnas e compromisso com regime sem rupturas

A participação brasileira na campanha da FMLN não se resumiu a uma mera associação de imagens. O governo brasileiro e o PT despacharam para lá assessores e técnicos para ajudar na campanha eleitoral e, depois da vitória, na transição de governo. O responsável pelo marketing foi o publicitário João Santana, o mesmo da reeleição de Lula. Santana passou três meses instalado em um escritório em El Salvador comandando uma equipe de trinta pessoas – vinte delas brasileiras. Não por coincidência, o símbolo da campanha era uma estrela vermelha, o candidato Funes sempre aparecia trajando ternos bem cortados, falando serenamente e discursando a "esperança" e a possibilidade de ser ele o homem certo para a "mudança com responsabilidade". A FMLN não informa quanto foi gasto com propaganda, nem quem foi o responsável pelo pagamento. Os adversários derrotados, é natural, insinuam que a fonte dos recursos pode ser localizada no Brasil.

A estrutura da campanha presidencial da FMLN contou com outras figuras importantes do governo brasileiro e do petismo – cada uma levando sua própria experiência a El Salvador. Marco Aurélio Garcia, o assessor para assuntos internacionais de Lula, esteve lá três vezes. O ex-ministro José Dirceu, que tem trânsito livre e acesso direto ao presidente Mauricio Funes, ajudou na estratégia de montagem das alianças políticas internas. A socióloga Ana Fonseca, uma das mentoras do programa Bolsa Família, passou uma semana no país projetando o Rede Solidária, a versão local do benefício. No início do ano, quando o clima na campanha ficou acirrado, Funes precisou atrair parte do empresariado para seu lado. Foi a vez de o deputado e ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci dar sua contribuição. Responsável pelo plano de governo do PT, ele recomendou que o candidato redigisse uma carta nos mesmos moldes da Carta ao Povo Brasileiro, da campanha de Lula em 2002, na qual garantiria que contratos seriam honrados e que o país pagaria suas dívidas. Isso acalmou os mercados, possibilitou a injeção de recursos na campanha do esquerdista e praticamente assegurou a vitória do candidato oposicionista.

Fernando Amorim/Folha Imagem
MULHER FORTE
Petista militante, a primeira-dama Vanda Pignato foi a responsável pela aproximação com Lula


Mesmo no processo de transição, a tecnologia petista continuou sendo aplicada segundo o modelo utilizado no Brasil. Gilberto Carvalho, chefe de gabinete de Lula, passou três dias em San Salvador para "ensinar Funes a negociar com a direita", conforme suas próprias palavras. Para mostrar que não estava blefando, na semana passada, ao anunciar os nomes de sua equipe econômica, Funes indicou políticos moderados e economistas ligados ao mercado financeiro para os principais cargos, inclusive o Banco Central. Também anunciou a criação de programa similar ao PAC. "Lula comanda no Brasil um estado planejador na busca de crescimento econômico, distribuição de renda e combate à pobreza. É o mesmo modelo que pretendo adotar aqui em El Salvador, adaptado às realidades do país", afirmou Funes. As semelhanças, porém, param por aí. A situação que Funes herda é muito mais grave do que a enfrentada por Lula. El Salvador viveu uma guerra civil de 1980 a 1992 que deixou mais de 75 000 mortos e dividiu o país. Mesmo após um acordo de paz bancado pela ONU e uma lei de anistia ampla nos moldes da brasileira, a violência ainda impera no país, que tem o maior índice de homicídios da América Latina. É comum ver seguranças privados armados de escopetas e metralhadoras protegendo prédios comerciais e residenciais, sempre cercados por rolos de arame farpado eletrificado. A economia é dolarizada e frágil, o país praticamente não tem indústria e possui parcos recursos naturais. Para piorar, inconformados com as primeiras medidas econômicas, setores do próprio partido de Funes ameaçam boicotar o governo. Sindicatos rurais acenam com uma greve contra o ministro da Agricultura e a equipe do vice-presidente eleito, um ex-guerrilheiro, em protesto, ameaça não ir à cerimônia de posse.

"Funes está em uma encruzilhada. Se mantiver o discurso responsável da campanha, poderá ter sucesso na economia, mas vai desagradar a boa parte de seu partido, podendo provocar instabilidade política", analisa o cientista político Roberto Rubio-Fabián, diretor executivo da Fundação Nacional para o Desenvolvimento de El Salvador. "Se ceder às ideias da Frente e aderir ao socialismo bolivariano de Chávez, ele poderá acentuar a crise econômica e dividir o país." Entre a cruz e a espada, Mauricio Funes terá de se mostrar um bom negociador e compensar com a adesão do empresariado e de parte dos políticos conservadores uma eventual dissidência na Frente, conclui Rubio-Fabián. Não será uma tarefa fácil. Mas nada pode ser fácil em um país dividido politicamente e com uma das maiores desigualdades sociais do mundo.

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABR
Sergio Lima/Folha Imagem
Alan Marques/Folha Imagem
ANTONIO PALOCCI
O ex-ministro sugeriu carta para garantir que não haveria quebras de contrato
ANA FONSECA
Esteve em El Salvador para ajudar no projeto de criação do Bolsa Família local
GILBERTO CARVALHO
Foi ao país para ensinar os ex-guerrilheiros comunistas a "negociar com a direita"

Apesar da estreita colaboração entre as equipes, o principal elo entre o Brasil e o novo governo salvadorenho é a advogada Vanda Pignato, a primeira-dama. Paulistana do Tatuapé e fundadora do PT, Vanda mudou-se para El Salvador em 1992, pouco depois de um acordo mediado pela ONU para pôr fim à guerra civil. Representante do PT para assuntos da América Central, há quinze anos ela conheceu Funes, então jornalista e apresentador de uma rede de televisão. Vanda foi essencial na escolha do marido como candidato da Frente e na estratégia de campanha, plugada na experiência do PT. Centralizadora, brigou com boa parte da velha guarda comunista, mas seu trabalho de aproximação com o Brasil e com o empresariado local lhe rendeu respeito – e inevitáveis comparações com o estilo do ex-ministro José Dirceu. A partir desta semana será possível começar a avaliar os resultados da vitória da "revolução" sem tiros. Se der certo, como se espera, Lula e o PT poderão dizer, com toda a razão, que "nunca antes neste continente...".




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