Falta de respeito Merval Pereira
Política

Falta de respeito Merval Pereira



O Globo - 31/08/2011


Quando o Supremo Tribunal Federal decidiu, com o voto decisivo do recém-nomeado ministro Luiz Fux, que a Lei da Ficha Limpa só valeria para a eleição de 2012, não podendo ser aplicada na de 2010, a senadora Marinor Brito, do PSOL, considerada eleita porque dois candidatos - Jader Barbalho e Paulo Rocha - foram enquadrados na nova lei, perguntou, indignada, temendo perder o mandato: "A Constituição diz que pode ser corrupto em 2010 e não pode em 2012?"

A mesma pergunta pode ser feita hoje, diante da decisão da Câmara de não cassar a deputada Jaqueline Roriz, flagrada em fita de vídeo recebendo dinheiro em 2006 do esquema do ex-governador José Roberto Arruda em Brasília.

O que os senhores deputados decidiram, em última instância, é que um político pode ter matado ou roubado antes de ser eleito que estará protegido pelo seu mandato se tiver conseguido esconder o crime até ter sido eleito.

Foi uma decisão de uma Câmara que não respeita o eleitor. E não se respeita.

Marinor Brito, do PSOL, continua sendo senadora, graças aos diversos recursos que podem ser feitos, entre a Justiça do Pará e a Federal, subindo até o Supremo Tribunal Federal, em mais um exemplo de como nossa Justiça pode ser manipulada para o bem e para o mal.

A votação de ontem na Câmara colocou de maneira inequívoca uma estaca no coração da Lei da Ficha Limpa, que corre o risco de não valer também para a eleição de 2012 e nem para qualquer outra.

O Supremo vai debater brevemente se a lei está de acordo com a Constituição, mesmo que, na votação anterior, nenhum dos ministros - mesmo os que entenderam que ela não poderia valer na eleição de 2010 por não ter sido editada um ano antes do pleito - tenha questionado sua legalidade.

Mas, como bem lembrou o ministro Ricardo Lewandowski, "o Supremo não se pronunciou sobre a constitucionalidade da lei."

Essa constitucionalidade, em relação aos seus vários artigos, será debatida durante o julgamento conjunto de três processos: duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) e uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin).

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nacional e o PPS pedem que o tribunal determine a constitucionalidade da lei. E a Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) quer que o STF declare inconstitucional o dispositivo que determina que são inelegíveis as pessoas excluídas do exercício de profissão em razão de "infração ético-profissional".

Há também diversos outros questionamentos, como por exemplo a velha discussão de que não se pode punir um candidato com a inelegibilidade antes de uma condenação definitiva da Justiça, o chamado "trânsito em julgado", pois estaria sendo ultrapassado o princípio constitucional da presunção da inocência.

Para além da discussão técnica sobre prazos para a aplicação da lei, os cinco juízes que votaram pela imediata vigência da Ficha Limpa se utilizaram do princípio da moralidade que deve reger o serviço público, previsto na Constituição, para aprovar a nova legislação.

Se não bastasse representar um avanço democrático fundamental, por ter nascido de uma petição pública com milhões de assinaturas, a Lei da Ficha Limpa teve uma qualidade suplementar, a de ultrapassar a exigência do "trânsito em julgado" dos processos, prevista na lei complementar das inelegibilidades e que protegia os candidatos infratores eternamente, na miríade de recursos que a Lei brasileira permite.

Desde 2006, há um consenso entre os presidentes de Tribunais Regionais Eleitorais de todo o país, de fazer prevalecer a interpretação de que não se pode deferir registro de candidatura quando existe prova de vida pregressa que atenta contra os princípios constitucionais.

E sempre esse princípio era derrubado pelo Tribunal Superior Eleitoral por uma margem mínima. O voto do ministro Carlos Ayres Britto naquela ocasião é exemplar dessa posição. A certa altura, disse ele que "o cidadão tem o direito de escolher, para a formação dos quadros estatais, candidatos de vida pregressa retilínea", ressaltando a importância do artigo 14 da Constituição Federal, que prega a moralidade na vida pública.

Outro ponto levantado contra a Lei da Ficha Limpa é de que a Constituição estabelece que nenhuma lei pode retroagir no tempo, a não ser para beneficiar o réu, isto é, ninguém pode ser condenado com base numa lei aprovada depois da data em que o crime foi cometido.

A Lei da Ficha Limpa fixou limites à elegibilidade, ampliando o alcance da punição de crimes que tornam um candidato inelegível pelo prazo de oito anos, até mesmo a renúncia ao mandato para escapar da cassação torna-se motivo para tornar esse candidato inelegível, e em muitos casos fazendo com que ele não possa concorrer até o fim do mandato a que renunciou.

O Supremo pode entender que uma lei de 2010 não pode retroagir no tempo para punir um candidato por crimes cometidos no passado, e esse é um dos argumentos, por exemplo, do ex-senador e ex-governador Joaquim Roriz, de Brasília, que está tentando se tornar elegível para 2012.

Roriz, como se sabe, é pai de Jaqueline. Ambos tentam limpar as respectivas fichas e estão tendo êxito. O que diz bem de nosso estágio político.



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