FERREIRA GULLAR A punição como crime
Política

FERREIRA GULLAR A punição como crime




O seqüestrador não é responsável pelo crime que cometeu; os responsáveis somos nós

O OFICIAL da Polícia Militar de Santo André, que comandou a operação de resgate das meninas que Lindemberg Alves mantinha prisioneiras, indagado por que demorara a ordenar a invasão do apartamento, respondeu que, se o tivesse feito mais cedo, teria sido acusado pela imprensa de preferir a violência ao diálogo. Já um especialista nesse tipo de operação diz que a norma é não esperar mais do que nove horas. A polícia de Santo André esperou cem horas para decidir-se pela invasão e ainda assim está sendo acusada de agir errado. Um psiquiatra, entrevistado pela televisão, afirmou que, "antes de tudo, devemos perguntar o que a sociedade fez de nossos jovens". Noutras palavras, o seqüestrador não é responsável pelo crime que cometeu; os responsáveis somos todos nós, que não seqüestramos nem matamos ninguém.
Não deveríamos, então, perguntar também o que a sociedade fez dos adultos, dos empresários, dos políticos, que são levados a roubar e a legislar em causa própria? Certamente também não terão culpa de seus crimes uma vez que foi a sociedade que os fez criminosos. E como a sociedade, sendo todos, não é ninguém, estaremos todos absolvidos e, sem culpa, entraremos no reino do céu.
Sucede que a coisa não é tão simples, pois, antes de chegarmos ao céu, teremos de viver e conviver em sociedade, o que só é possível se se obedecem às normas que a regem. E essas normas, por sua vez, só serão respeitadas se quem as desobedecer pagar por isso, ou seja, se for punido. E aí está a dificuldade: por que punir quem viola as normas se é a sociedade que o induz a violá-las? Ele é, portanto, inocente, e não será justo punir um inocente.
Não tenho dúvida alguma de que, exatamente nos setores encarregados da punição, existe um sentimento subjacente de que só se deve punir em último caso, já que a punição é coisa retrógrada, resto de uma noção de Justiça anacrônica. Posso estar errado mas ouço com freqüência advogados e juristas nos alertarem para o fato de que não se deve usar a lei para vingar-se do réu.
Sei que não tenho autoridade para falar de leis e problemas jurídicos. Não tenho, como a vasta maioria dos cidadãos também não tem. Não obstante, o problema da segurança, do respeito à nossa vida e a nossa tranqüilidade, passa pelas mãos dos que estão encarregados, pela sociedade, de aplicar as leis e fazê-las respeitar. E se eles não o fazem ou o fazem mal, isso nos atinge. Na minha santa ignorância, tenho a audácia de afirmar que a complacência com o crime torna inviável o convívio social e que seria preferível viver numa sociedade em que o aumento da criminalidade fosse menos assustador.
Vamos ao exemplo mais primário: se a mãe vê o filho insistir em bater na irmãzinha e não o pune, o mais provável é que ele continue a espancá-la. Punição não é crueldade nem vingança, mas o recurso que resta para deter quem não aceita submeter-se às normas do convívio social. Se é verdade que uma noção primária de educar consistia em espancar brutalmente as crianças, foi, mais tarde, substituída por uma complacência que anulou a autoridade dos pais. Hoje, compreende-se que o respeito às normas não é algo inato e, sim, incutido nas pessoas pela educação, visando tornar seguro e pacífico o convívio social.
São coisas óbvias que, no entanto, parecem esquecidas quando a OAB de São Paulo pretende revogar a lei que instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado, sob a alegação de que atenta contra os direitos humanos do sentenciado. Todos sabemos que, de dentro das penitenciárias, alguns criminosos conseguem dirigir quadrilhas de bandidos que, sob suas ordens, praticam todo tipo de crime, do tráfico ao assassinato. O RDD impede a ação daqueles criminosos, donde que sua revogação só servirá a eles. O que leva, então, a OAB a empenhar-se em semelhante iniciativa que atenta contra a segurança dos cidadãos?
Não saberia responder com plena convicção, mas me parece ajustar-se à já mencionada maneira de encarar o crime e, conseqüentemente, a punição: o criminoso é uma vítima da desigualdade social. A partir dessa premissa, todo o aparato judicial, com sua finalidade punitiva, não é nada mais do que um instrumento de que a sociedade se vale para consumar uma dupla injustiça, ou seja, depois de transformar os pobres em bandidos, ainda os pune. Certamente a OAB se apóia em argumentos jurídicos para demonstrar que a lei do RDD atenta contra os direitos dos cidadãos. Mas não será direito dos cidadãos estar a salvo da ação de criminosos?



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