FERREIRA GULLAR Uma fábula sindical
Política

FERREIRA GULLAR Uma fábula sindical



O governo organizaria os sindicatos em vez de deixar que os próprios trabalhadores o fizessem


QUANDO BRALÂNDIA começou a se industrializar, muitos outros países já haviam atingido esse nível de desenvolvimento, o que possibilitou aos capitalistas bralandeses prevenir-se para enfrentar alguns dos problemas que a industrialização traria. "O ideal seria as fábricas funcionarem sem operários, mas isso é impossível", observou um empresário de Bralândia com um sorriso sardônico. E tinha razão, porque, como ocorreu em outros países, os operários terminaram organizando-se em sindicatos e passaram a reivindicar salários mais altos. Como impedir que isso viesse a ocorrer em Bralândia? Foi difícil encontrar resposta para essa questão, mas finalmente descobriram uma saída: fazer com que o governo tomasse a iniciativa de organizar os sindicatos em vez de deixar que os próprios trabalhadores o fizessem. Mas qual a vantagem disso?, alguns perguntaram.
A resposta mostrou um plano ardiloso: os trabalhadores lá de fora não mantinham os sindicatos com a contribuição tirada de seu salário? Pois bem, nosso governo criará um imposto obrigatório: desconto de um dia do salário de todos os trabalhadores e com esse dinheiro financiará os sindicatos que, desse modo, perderão a autonomia.
Assim sendo, terá o governo o poder de influir na escolha dos dirigentes sindicais, favorecendo àqueles que impeçam o radicalismo das reivindicações. Noutras palavras, os sindicatos que elejam dirigentes independentes não conseguirão os recursos que o governo controlará.
Esse plano foi posto em prática e deu o resultado esperado. É verdade que os líderes sindicais mais conscientes denunciavam as falsas lideranças -os pelegos- mas inutilmente porque os trabalhadores estavam alheios a essa disputa e o governo cortava a verba dos sindicatos rebeldes, o que levava ao desgaste daqueles líderes. Desse modo, o capitalismo industrial de Bralândia pôde crescer em condições privilegiadas, pagando baixos salários e obtendo lucros invejáveis.
Sucede que a vida muda e muitas vezes o que é bom e lucrativo faz surgir seu contrário.Foi o que ocorreu neste caso: o alto lucro fez crescer a produção,que necessitou de muito mais operários e acirrou a disputa entre as empresas.
Algumas tiveram que fazer concessões aos empregados, fortalecendo as lideranças mais combativas que surgiram. Cresceu o número de trabalhadores mais conscientes de seus direitos. A situação internacional, polarizada pela disputa entre o capitalismo e o socialismo, terminou arrastando os militares para o centro da questão nacional e o resultado foi um golpe militar.
Essa ditadura prendeu e eliminou as lideranças sindicais combativas, pôs em seu lugar dirigentes que pregavam a acomodação em face do regime e do interesse das empresas.
Durante muitos anos nenhum sinal de descontentamento se registrou nas áreas sindicais. Os salários foram congelados, os lucros das empresas cresceram como nunca em toda a história de Bralândia mas, como já disse, a vida muda, e assim foi que, pouco a pouco, novas lideranças surgiram entre os operários e, de repente, as primeiras greves marcaram um novo despertar da classe trabalhadora.
A repressão não se fez esperar mas, como o mundo também havia mudado, as ditaduras já não eram bem vistas. Os militares passaram a falar numa abertura gradativa, que denotava o enfraquecimento do regime autoritário. De fato, ele se havia tornado um problema para os empresários, que, sempre pragmáticos, preferiram se aliar às lideranças operárias, intelectuais e estudantis, para acabar com ele e restaurar a democracia.
A volta ao regime democrático, se foi uma conquista de toda a nação, resultou, sobretudo, numa vitória dos capitalistas, que reconquistaram sua condição de classe dominante. E, nesse novo quadro, como ficaram as lideranças sindicais?
Livres da repressão militar, aqueles líderes, que alegavam falar em nome de milhões de trabalhadores, tornaram-se uma ameaça aos interesses dos patrões. Por outro lado, impuseram-se também ao governo, que teve de entregar-lhes o controle do imposto sindical, que eles agora propõem aumentar de um para quatro dias descontados compulsoriamente de todos os assalariados.
Desse modo, patrões, governantes e sindicalistas passaram a repartir entre si o poder na máquina do Estado, em conseqüência do que, se a classe operária não chegou ao paraíso, alguns de seus filhos (os mais safos) passaram a viver como vivem os ricos. E assim, em Bralândia, se não reina igualdade, reina a paz.



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