Política
FERREIRA GULLAR Uns mentem, outros deliram
FOLHA DE S PAULO
Lula está convencido do papel que a História lhe teria destinado; parece personagem de Gogol
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SERIA SIMPLIFICAÇÃO excessiva dividir os políticos em duas categorias distintas: a dos honestos, sinceros, imbuídos de espírito público, e a dos desonestos, mentirosos e voltados apenas para seus próprios interesses: enfim, anjos de um lado e demônios, do outro.
Sabemos que não é assim, e alguns escândalos ocorridos há pouco, no Congresso e fora dele, deixaram isso bem claro. Daí sermos levados a considerar que, queiramos ou não, o mundo político tem características peculiares que, se não nos devem levar a abrir mão das exigências éticas no comportamento de qualquer cidadão, ensinam-nos a admitir uma margem de tolerância que permita ao transviado arrepender-se e corrigir-se, mesmo porque todos nós estamos sujeitos, vez por outra, a pisar na bola.
É certo que há erros e erros e, como se sabe, se errar é humano, persistir no erro é indesculpável. E, infelizmente, em nosso universo político, há muitos que não apenas erram e persistem, como abusam da tolerância alheia.
Os valores éticos não podem ser relativizados, é claro, mas o desvio será tanto mais grave quanto mais importante for o lugar que ocupe o infrator no âmbito da sociedade. Por exemplo, o suborno é inaceitável, seja praticado por quem for, mas será certamente mais grave se quem o praticar for o governador do Distrito Federal ou um senador da República. Não será menos grave se se tratar de um ministro de Estado e, mais grave ainda, se for o presidente da República. Este, então, por sua condição de chefe de Estado, está obrigado a seguir com rigor e transparência todas as normas éticas e constitucionais.
Pois bem, mentir não é pecado apenas perante Deus, mas igualmente perante os cidadãos. Há um tipo de político para quem isso não tem importância, desde que contribua para manter seu prestígio ou a governabilidade. Há mesmo aqueles que garantem serem mentirosas as acusações verdadeiras que lhes são feitas, atribuindo-as aos adversários políticos ou à imprensa. Eles têm consciência de que a maioria da opinião pública sabe que mentem, mas estão se lixando para ela, já que os seus currais eleitorais só acreditam no que eles dizem e sempre votarão neles. O resultado é que importa, o pragmatismo está acima da ética.
E não é isso que fazem tantos políticos e, entre eles, Lula e seu partido? Todo mundo sabe que eles se opuseram ferozmente à política econômica do governo anterior, chegando Lula a afirmar que o Plano Real era um golpe eleitoral que não duraria seis meses; que a Lei de Responsabilidade Fiscal era uma farsa e o Proer, um pretexto para dar dinheiro a banqueiros. No entanto, desde o primeiro dia de seu governo, Lula aplica essas medidas que combateu, sem jamais dizer que as herdou do governo passado. Pelo contrário, sua turma afirma que FHC lhes deixou uma herança maldita, quando, na verdade, a inflação de 2002 foi provocada pela possível vitória de Lula, que assustava os investidores. E, como se não bastasse, não hesitam em dizer que a oposição não tem programa de governo, sabendo que se apropriaram dele, uma vez que ostentam, como seu, o programa que era do governo anterior.
Deve-se reconhecer que ter seguido a política econômica que dera certo foi uma decisão correta do governo Lula, mas como admitir que governa apoiado nas medidas que, se dependesse dele e seu partido, jamais teriam sido adotadas? Não o admite porque seria aceitar que deve grande parte de seu êxito ao adversário, o que desarmaria a tese segundo a qual ele, Lula, não é apenas mais um presidente que o povo elegeu, e, sim, o único, até hoje eleito, que efetivamente o representa.
Essa convicção não se baseia em argumentos lógicos e, sim, numa visão mistificada, segundo a qual, depois de séculos, um filho do povo, nascido na pobreza, derrotou os ricos e tomou-lhes o poder. Por essa razão, o próprio Lula considera-se um predestinado. Não por acaso, em seus discursos, ele sempre afirma: "Nunca antes na história deste país...". E quer anular tanto o TCU quanto a imprensa, já que um predestinado não pode ser nem fiscalizado nem criticado.
Por isso mesmo, não diria que ele é um mentiroso nem um farsante, já que está convencido do papel que a História lhe teria destinado. Lembra-me aquele personagem de Gogol que, chegando à província, foi tomado equivocadamente como o inspetor geral a serviço do czar e passou então a agir como tal, certo de que era o que não era. Lula, como aquele personagem, pode acordar dessa ilusão, em 2010, quando o verdadeiro inspetor chegar à cidade. Ou não.
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