A revolta assusta os turbantes
Protestos contra fraude na reeleição de Ahmadinejad expõem
o desejo de mudança de uma sociedade mais jovem, moderna
e bem-educada que aquela que levou os aiatolás ao poder
Thomaz Favaro
Fotos Behrouz Mehri/AFP e Konstantin Chernichkin/Reuters |
POR UM POUCO MAIS DE LIBERDADE Mir Hossein Mousavi (de braços erguidos) lidera uma manifestação pela anulação das eleições. À direita, iranianas questionam: "Onde está meu voto?" |
O mundo tornou-se mesmo pequeno. A ideia de liberdade individual chegou até o bastião da teocracia mais opressora do planeta. Os jovens iranianos que, desde a semana passada, saem às ruas para denunciar fraude nas eleições que reelegeram uma figura sinistra, o presidente Mahmoud Ahmadinejad, sinalizam algo inesperado no sufocante mundo criado pelos aiatolás. Eles querem igualdade entre homens e mulheres, mais acesso à internet, mais livros e liberdade de empreender. É sintomático que a primeira providência do regime na tentativa de esvaziar as manifestações tenha sido um ataque à internet. No sábado, o dia seguinte às eleições, as empresas estatais de telecomunicações simplesmente tiraram o plugue da tomada, suspendendo a comunicação de internet com o mundo exterior. O volume do tráfego de informações caiu de 5 gigabits por segundo (Gbps) para menos de 0,3 Gbps. A conexão foi sendo retomada paulatinamente ao longo dos dias subsequentes, mas ainda em volume reduzido.
É fato que as manifestações foram organizadas com ajuda das redes sociais, como o Twitter, e de mensagens de texto. Ainda é difícil avaliar o impacto real da internet na explosão que ameaça a ditadura xiita. Mas está evidente que os aiatolás enxergam na liberdade cibernética um inimigo a ser controlado. Eles têm razão. Em regimes autoritários, a mobilização on-line preenche o vácuo deixado pela falta de instituições e organizações que, na democracia, agrupam pessoas com interesses comuns. Os manifestantes iranianos não são comandados por ninguém, mas, devido à tecnologia, estão conectados uns com os outros. "Nesses países, a internet é a única forma de um cidadão obter determinados tipos de conteúdo, do entretenimento à política", disse a VEJA Evgeny Morozov, pesquisador do Instituto Open Society, de Nova York. Depois que os correspondentes estrangeiros foram proibidos de cobrir as manifestações, a imprensa internacional recorreu às mensagens e aos vídeos postados pelos iranianos para ter informações frescas dos acontecimentos. O blog do jornalista Andrew Sullivan, da revista americana The Atlantic, conseguiu 1,2 milhão de visitas compilando e traduzindo pequenas mensagens enviadas pelo Twitter. "Segundo médicos de hospitais no Irã, os tiros nos civis são da cintura para cima. Eles estão enterrando os corpos antes que as famílias os vejam", escreveu alguém. "Minha mãe acabou de falar com parentes em Shahrak-e-Gharb [bairro nobre em Teerã] que moram em apartamentos (sorte). Centenas de casas foram atacadas, a rua está arruinada", relatou outro.
AP |
COM FORÇA, MAS SEM LEGITIMIDADE Milicianos islâmicos, os bassiji, de motocicleta, atacam manifestantes em Teerã: o líder supremo já autorizou o uso de força |
Em linhas gerais, a situação no Irã é de fácil compreensão. O presidente foi reeleito com a maioria esmagadora de votos, apesar de as pesquisas terem previsto sua derrota para Mir Hossein Mousavi, que, por falta de definição melhor, é considerado o candidato reformista. Em menos de vinte minutos após o fechamento das urnas, 20% das cédulas de votação já haviam sido contadas – um recorde espetacular de velocidade, visto que no Irã se vota em cédulas de papel que precisam ser apuradas uma a uma. Tudo isso distante de qualquer representante da oposição ou de observadores internacionais, impedidos de acompanhar a votação. Apesar do comparecimento massivo – 85% dos eleitores, indicativo de uma disputa acirrada –, Ahmadinejad venceu com 63,5% dos votos. Mousavi pediu a anulação do pleito, os iranianos saíram às ruas. O governo reagiu com o script usual: prendendo opositores, mandando a polícia e a temível milícia islâmica, os bassiji, reprimir os protestos. Na sexta-feira, o aiatolá Ali Khamenei, líder supremo que dá a última palavra sobre tudo no Irã, anunciou que o regime perdera a paciência e mandou parar com as manifestações. Quem insistisse sentiria a mão pesada dos aiatolás.
Durante toda a semana, os protestos reuniram mais de 1 milhão de pessoas nas ruas de Teerã. Desde a revolução islâmica, em 1979, não se viam manifestações tão numerosas. "Pela maneira como os protestos transcenderam classes sociais, é nítido que as aspirações por maior liberdade são um desejo de grande parte da população", disse a VEJA o iraniano Shaul Bakhash, professor de história do Oriente Médio da Universidade George Mason, nos Estados Unidos. A sociedade iraniana mudou muito desde a revolução islâmica, quando a maioria da população ainda vivia nas zonas rurais. A porcentagem de jovens alfabetizados saltou de menos da metade para 97%. Hoje, sete em cada dez iranianos moram em cidades e um terço da população tem acesso à internet, média similar à brasileira. É difícil confinar toda essa gente nos muros estreitos do fanatismo religioso.
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MESSIAS ALUCINADO Ahmadinejad se declara o escolhido de Alá: e ele ainda quer ter armas nucleares |
O que está nítido é que a legitimidade do regime foi posta em xeque dentro da própria cúpula que governa a República Islâmica do Irã. O racha entre moderados (ênfase na "República") e conservadores (foco em "Islâmica"), existente desde os primórdios da revolução, foi aprofundado pelo extremismo de Ahmadinejad e, pela primeira vez, veio a público. Mousavi é apoiado pelo ex-presidente Mohammed Khatami, um reformista, e pelo bilionário Akbar Hashemi Rafsanjani, presidente da Assembleia de Especialistas, órgão que nomeia o líder supremo – e também pode derrubá-lo. Uma dúvida é o que esperar de Mousavi. O aiatolá Ruhollah Khomeini, fundador da república islâmica, o considerava um filho. Agora vem a parte ruim da biografia. Mousavi foi primeiro-ministro (um cargo que não existe mais) durante a década de 80, quando o regime era ainda mais fechado que hoje. Ele autorizou massacres de dissidentes políticos, estatizou a economia e deu o pontapé inicial do programa nuclear. Os iranianos não o consideram um liberal, e sim um pragmático. Isso é positivo, pois significa que não é um fanático com delírios messiânicos, como Ahmadinejad.
Não se pode imaginar que, se fosse presidente, Mousavi iria suspender o programa nuclear, que o mundo condena, ou deixar de apoiar os terroristas do Hezbollah e do Hamas – mas com certeza empregaria uma linguagem mais educada e diplomática. Talvez, como Khatami, ele seja favorável ao diálogo entre civilizações. Já Ahmadinejad profetiza a guerra entre o Islã e o Ocidente, cultiva um desavergonhado antissemitismo, diz que o holocausto é uma mentira sionista e promete varrer Israel do mapa. É possível também que com Mousavi houvesse maior liberdade no Irã. Mas não se pode contar com muito, pois o poder do presidente é limitado. As propostas reformistas do presidente Mohammed Khatami, na década passada, foram logo tolhidas pelos religiosos ultraconservadores. O Conselho dos Guardiães, que zela pela pureza ideológica, é responsável pela aprovação das candidaturas eleitorais (na última, barrou 471 aspirantes). Se Mousavi representasse um perigo à teocracia, não teria passado pelo crivo do conselho. O que vai ocorrer nesta semana é doloroso de imaginar. As milícias islâmicas e a polícia, que apoiam Ahmadinejad, já receberam autorização do líder supremo para iniciar a repressão sem dó. Pobres iranianos.
Foto Atta Kenare/AFP