Política
Joana D'Arc e Petrobras: DEMÉTRIO MAGNOLI
O Globo - 28/05/2009
Ernest Lavisse escreveu o “Petit Lavisse”, a coleção clássica de manuais de história para o ensino básico francês do final do século XIX. Numa das edições de suas cartilhas patrióticas, ele evoca Joana D’Arc falando ao rei Carlos VII de São Luís e Carlos Magno: “Aquela moça do povo sabia que a França existia há muito tempo e que seu passado estava repleto de grandes lembranças.” O lugar da mítica camponesa guerreira na articulação do nacionalismo francês é ocupado no Brasil pela Petrobras.
“Num momento de crise internacional, levantar uma CPI contra a Petrobras é ser pouco patriota.” Lula deu o tom da reação oficial à CPI instalada no Senado com uma frase curta que contém três elementos cruciais: o perigo externo (“crise internacional”), o ataque à estatal criada por Getúlio Vargas (“contra a Petrobras”) e a traição à pátria (“pouco patriota”). Sob a batuta do maestro, ministros tocaram a melodia ensaiada. Guido Mantega acusou a oposição de “atrapalhar a empresa e provocar volatilidade no mercado”. Paulo Bernardo afirmou que o objetivo seria “desmoralizar a Petrobras” para privatizála no futuro. Carlos Lupi concluiu que a CPI é “contra o Brasil”.
No Brasil de Lula, o governo estendese muito além dos ministérios. A CUT e a UNE, como tantas outras entidades, tornaram-se tentáculos de um aparelho político oficial e recebem verbas do Estado e de empresas estatais, especialmente da própria Planalto, as duas entidades, ao lado do sindicato dos petroleiros, promoveram um ato público contra a CPI. O manifesto sindical de convocação conclamava à defesa da “soberania nacional” e ao repúdio a “essa manobra antinacionalista dos tucanos”.
O jogo político tem suas regras. CPIs são instrumentos das minorias. Governos não gostam de inquéritos parlamentares, mesmo se não temem investigações.
O furor retórico em curso é um indício óbvio do temor suscitado pela hipótese do desvendamento da teia de relações que conecta a bilionária estatal à rede política do presidente e de sua base de sustentação. Mas, no caso, há algo mais que isso. Em todos os tempos e países, o crime de traição à pátria constitui a abominação extrema, punida com as penas mais severas: a prisão perpétua, o degredo, o fuzilamento.
A acusação lançada contra a oposição implode as regras do jogo político normal da democracia. A sua fonte profunda não é uma estratégia voltada para as próximas eleições presidenciais mas a degradação nacionalista do pensamento de esquerda.
Originalmente, tanto os liberais quanto os socialistas ignoraram o nacionalismo.
Karl Marx interpretou o nacionalismo como uma falsa consciência, que ofuscava os interesses de classe do proletariado. Os nacionalistas cunharam um dístico clássico: “Certo ou errado, é o meu país.” Os marxistas o substituíram por outro, que exprimia o sentido de sua lealdade incondicional: “Certo ou errado, é o meu partido.” Na crise geral que se estendeu desde a eclosão da guerra de 1914 até o encerramento da Segunda Guerra Mundial, o nacionalismo converteu-se na marca política da extrema direita. Hoje, apropriadamente, o estandarte de Joana D’Arc abre as manifestações da Frente Nacional francesa, do fascista tardio Jean-Marie Le Pen.
O conceito de imperialismo conectou a esquerda ao nacionalismo. Lenin tomou-o emprestado de John A. Hobson e tentou adaptá-lo ao marxismo, preservando a noção de luta de classes.
Não obteve sucesso. O conceito, teimosamente, refluiu para o seu significado original, de dominação de uma nação sobre outra, sedimentando-se como pretexto para as alianças entre a esquerda e frações da classe dirigente nacional contra o “inimigo estrangeiro”.
Na era da globalização, a deriva teórica atingiu o zênite e, sob o nome de imperialismo, uma esquerda sem rumo abraçou a rejeição ao cosmopolitismo que tipifica o pensamento de direita.
Não é outra a razão pela qual o antiamericanismo de Hugo Chávez convive tão bem com o antissemitismo de Mahmoud Ahmadinejad.
Capitalismo de Estado é a alternativa imaginada por Hitler e Mussolini ao capitalismo liberal, que odiavam por associálo à dominação anglo-saxônica e à conspiração judaica mundial. O “socialismo do século XXI”, pregado pelo sociólogo Heinz Dieterich, um dos gurus de Chávez, representa uma restauração explícita da ideia de capitalismo de Estado. No lugar do socialismo clássico, ou como longa transição até aquela meta, o Estado dirigiria uma economia capitalista nucleada por empresas estatais e grandes conglomerados nacionais privados. De acordo com essa lógica, a Petrobras não é apenas uma empresa estatal, que deve ser avaliada pela sua eficiência e está obrigada a prestar contas aos cidadãos e a seus acionistas, mas uma ferramenta privilegiada de um programa político. Eis o motivo pelo qual seus segredos precisam permanecer submersos.
No “Petit Lavisse”, como assinalou Pierre Nora, a verdade histórica confundese com um imperativo moral: a unidade. Este é o imperativo do nacionalismo, que está sempre a um passo da rejeição da democracia, o regime da diversidade política e da discórdia organizada. No discurso dos nacionalistas, pende sobre a oposição a acusação permanente de representar a quinta-coluna: os elementos infiltrados que veiculam interesses estrangeiros.
Lula não compartilha o credo nacionalista de seu partido, mas não se curva a limites éticos e conhece as vantagens práticas de empregar o ardil maniqueísta nas horas decisivas.
Em 2006, Geraldo Alckmin rendeu-se à chantagem quando, confrontado com a falsa acusação de pretender privatizar a Petrobras, apresentou-se para o segundo turno como um patético cabide de broches de empresas estatais. Se a oposição nada aprendeu daquele episódio humilhante, entrará em falência.
Uma coisa é perder nas urnas. Outra, bem distinta, é renunciar à defesa dos princípios democráticos.
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