Lorenzo Valla e o Enriquecimento Ilicito da Igreja
Política

Lorenzo Valla e o Enriquecimento Ilicito da Igreja


Foi o seu conhecimento da história do Império Romano, mais especialmente da história da língua latina [1], que permitiu ao filósofo humanista Lorenzo Valla (1407-1457) em meados do século XV, demonstrar que a chamada “Doação de Constantino” (Constitutum Constantini) um documento no qual o Imperador cedia os territórios do centro de Itália ao Papa e aos seus sucessores da Igreja Católica, não tinha nada a ver com Constantino o Grande (272-337) e que fora escrita séculos mais tarde, cerca do século VIII. O panfleto escrito por Valla entre 1439 e 1440 - “De falso credita et ementita Constantini Donatione declamatio” - contra a Doação de Constantino provou efectivamente que o famoso documento, pelo qual a autoridade imperial romana teria sido transmitida ao Papado, era uma fraude. Segundo Valla, o documento, longe do estilo latino clássico, e o vernáculo utilizado era tão bárbaro que tinha forçosamente de ser de uma data muito posterior àquela a que alegava pertencer. Por exemplo, os romanos da época de Constantino I não poderiam ter usado a palavra “sápatra” a qual consta várias vezes do escrito.

A “Doação de Constantino” sugere que Constantino, confessando a sua fé, tinha "doado" todo o Império Romano do Ocidente à Igreja Católica Romana [3] o que era entendido como um acto de gratidão por o Imperador ter sido milagrosamente curado da lepra por Silvestre I (Papa entre 314-335). Esta versão porém não tem fundamento, pois está documentado que Constantino padeceu de lepra incurável até ao final da sua vida, tendo então sido “baptizado com a intenção de lhe perdoar os seus pecados” [4] por Eusébio bispo de Nicomédia [5].

Silvestre abençoa a dádiva de Constantino (gravura do seculo XIII)
O documento foi ignorado até ao século IX. Em Roma, até ao ano 976 ninguém se lhe referia – o que é muito estranho, pois o mesmo fora pretensamente concebido em 315 e seria logicamente de execução imediata. Aqui começam as contradições. Já em 1001, o imperador Oto III rejeitou a autenticidade do documento. Até ao imperador Sigismundo, em 1433, a Doação era constantemente citada como autêntica. Nos debates medievais, a Donatio foi porém rejeitada muitas vezes e classificada como falsa, deixando o escrito definitivamente de ser levado a sério no século IX. A Doação, como “prova documental” forjada, começou a ser citada para apoiar o poder temporal do Papado, desde pelo menos o século XI, o que remete, obviamente, para as analogias com a “Doação de Pepino o Breve”, passando ao lado deste ter consagrado à Igreja todas as terras ocupadas pela tribo germânica invasora dos Lombardos a norte de Roma no ano de 754 (o Exarcado de Ravenna), bem como a Córsega, a Sardenha e a Sicilia, territórios que serviram de base à fundação dos Estados Pontificios no ano de 756 e não em 356 aquando do 1º Concilio de Niceia presidido pelo Papa depois santificado como “São Silvestre” sem que tivesse passado por qualquer “martirio” cristão [6].

Papa Eugénio IV
O trabalho de Valla ao provar que a “Doação de Constantino” era uma falsificação foi escrito a pedido do seu patrono, Alfonso V de Aragão. Alfonso estava em conflito com os Estados Pontifícios do Papa Eugénio IV [7]sobre uma disputa de territórios (conduzindo uma guerra depois da qual Alfonso seria coroado como Afonso I, rei de Nápoles) e o trabalho de Valla tinha decerto a finalidade de ser usado para enfraquecer ou, eventualmente, negar a autoridade e a reivindicação sobre esses territórios dados como adquiridos pela Igreja.

Valla, um conceituado filósofo que lutou para que não se perpetuassem antigos erros decorrentes de traduções defeituosas da rede de copistas a partir de Aristóteles e da Bíblia dos originais em grego, não pretendeu expor a “Doação” como expressão de ódio ao cristianismo...,

o Quarteirão Espanhol (Quartiere Spagnoli) em Nápoles na actualidade
... uma vez que ele próprio era antes do mais um cristão, agindo simplesmente para desmascarar os líderes da Igreja que ele sentia vinham ganhando demasiado poder ao começar a agir mais como Soberanos ligados à Propriedade Terrena do que a Autoridades Religiosas encarregadas de difundir a mensagem evangelizadora de Cristo (a partir do Céu). O ensaio começou a circular em 1440, mas foi fortemente rejeitado pela Igreja, não sendo formalmente publicado senão 77 anos depois (1517). Logicamente, tornar-se-ia popular entre os protestantes. Uma tradução em Inglês foi publicada por Thomas Cromwell em 1534. O polémica com Valla foi tão convincentemente argumentada que permanece até hoje como prova da ilegitimidade da “Doação de Constantino” e da forma como a Igreja Católica “Apostólica” de Roma se implantou e enriqueceu através da criação de uma Mitologia própria, apenas 400 anos após a passagem de Jesus pela vida terrena (se é que passou), estando já os principios da moral cristã à muito esquecidos (se é que até então, ao principio dos "Studia Humanitatis" do movimento renascentista, alguma vez tinham chegado a existir)...[8]

Fontes:
- Foundations of Modern Historical Scholarship, D. Kelley, no capítulo que relaciona Linguagem, Direito e História.
- “o Renascimento” – Peter Burke
- “Christianity and Paganism, 350-750: The Conversion of Western Europe” - J. N. Hillgarth
- "Dicionário do Renascimento Italiano", John R. Hale, tradução da Jorge Zahar Editor

Viva! então como vamos com a nossa parceria especializada em sugar o povo?
notas
1) “Elegantiari Libri” (Da Elegância da Lingua Latina, 1444)
2) Constantino foi uma figura controversa já na sua época: o último imperador pagão, o seu sobrinho Juliano, dizia que ele era atraído pelo dinheiro e que buscou acima de tudo, enriquecer-se a si e aos seus partidários — traço este (de saber enriquecer os amigos) que também foi reconhecido pelo historiador Eutrópio e pelo próprio Eusébio de Cesareia
3) Annuario Pontificio (Libreria Editrice Vaticana 2008)
4) Antes da sua própria conversão (durante a Batalha de Ponte Milvius em 312 em que venceu o rival Maxêncio e dividiu o Império com Licinio governando o Ocidente) Constantino doava mesmo toda a autoridade sobre as comunidades cristãs do Império do Oriente (Antioquia, Jerusalém, Alexandria e Constantinopla) e entregava as Igrejas de Latrão, de São Pedro e de São Paulo – fora dos muros de Roma -, terras situadas em diversos pontos do Império Romano, como a Judeia, Grécia, Trácia e Ásia Menor, outorgando ao Papa a faculdade de promover senadores do Império ao nível de Sacerdotes – uma rede que pretensamente teria fundado a Igreja e cujo chefe seria o Papa como Pontifex Maximus (Sumo Sacerdote).
5) Na Idade Média não era incomum a falsificação de documentos com a finalidade de induzir determinadas ideias. Nos séculos XI e XII, por exemplo, diversos documentos falsos foram produzidos para difamar os Papas, declarando a deposição de clérigos, excomunhões e condenações ao cárcere.
6) “São Silvestre”, com o evoluir da mitologia católica virou o santo cujo dia se comemora na passagem de ano a 31 de Dezembro (infopedia)
7) Eugénio IV foi o autor, entre outros mimos, da bula Rex Regnum que incentivava o tráfico de escravos (wikipedia)
8) Humanismo Renascentista (wikipedia)



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