Outro dia acionei a máquina do tempo e passei cinco horas em uma sessão especial do filme "Che", de Steven Soderbergh, quase ao mesmo tempo em que, na Bahia, saídos da mesma máquina, líderes latino-americanos faziam as honras para a entrada de Cuba em uma organização regional que pretende ser o contraponto da Organização dos Estados Americanos (OEA). Na tela, o irmão-ditador Raúl Castro é vivido pelo brasileiro Rodrigo Santoro, que se diz honrado com o papel. Nem o personagem deveria honrá-lo, nem o papel, que é secundário.
Assim como as homenagens que Cuba recebeu no resort baiano, o filme é uma ação entre amigos, uma elegia ao herói romântico, totalmente desprovido de análise histórica ou perspectiva. Tem duas partes, "O Argentino" e "Guerrilha", com um intervalo entre elas, como nos filmes épicos da minha juventude como "Ben Hur".
O Che Guevara de Soderbergh tem apenas a asma como sinal de um ser humano, e mesmo assim para dignificar sua capacidade de superação dos obstáculos que enfrenta. O filme pode ser comparável a uma T-Shirt com a foto de Korda estampada; não passa de uma propaganda do mito guerrilheiro.
O médico argentino, que se une a um pequeno grupo liderado por Fidel Castro no México para derrubar o ditador Fulgêncio Batista e tomar o poder em Cuba, não comete um erro, tem sempre a palavra certa, o gesto generoso, um revolucionário 24 horas por dia, sempre do lado certo.
Quando, na selva, fuzila dois guerrilheiros que desertaram e começaram a cobrar dinheiro dos camponeses e a molestar suas filhas, Guevara o faz em defesa dos pobres e da pureza da revolução.
Quando, já vitorioso, afirma na tribuna da ONU que a revolução cubana continuará fuzilando seus inimigos, está defendendo a vitória do povo cubano.
Naquelas cinco horas, preso na máquina do tempo, é possível emocionar-se com algumas cenas, e até mesmo lamentar que os pobres bolivianos sejam tão passíveis de manipulação pelo governo da ocasião a ponto de não seguirem Guevara na sua marcha libertadora.
Mas, saindo da máquina do tempo, a realidade de Cuba hoje só permite nostalgia do que "poderia ter sido e não foi". Recentemente, estive com Regis Debray, um dos mais influentes intelectuais franceses da atualidade, que foi o teórico da guerrilha boliviana.
Preso por três anos, quer distância da América do Sul e tem uma visão crítica da situação política, embora diga que gosta tanto de Lula quanto de Chávez. Ele diz, por exemplo, que "trocamos o messianismo do comunismo pelo messianismo religioso islâmico-cristão; norte-americano ou muçulmano". Irônico, comentou: "Não diria que esse foi um progresso".
Debray não considera a chegada do indígena Evo Morales ao poder uma continuidade do movimento de guerrilha de que participou nos anos 1960 junto com Che Guevara, e admite que "naquela época não levamos em conta o fator étnico dos aymaras e queixuas. Foi um erro, não estávamos inseridos suficientemente dentro da realidade social e cultural da Bolívia".
Debray acha que "é preciso desejar" que se produzam mudanças políticas em Cuba, mas diz que "o essencial da revolução em termos sociais e educativos" deve ser mantido.
Por mais cuidadoso que tenha sido em seus comentários sobre Cuba, Debray foi mais audacioso na crítica subentendida do que os dirigentes latino-americanos que fizeram a festa anacrônica para a entrada de Cuba num simulacro de organismo regional, sem que ao menos uma palavra de incentivo à democracia tenha sido pronunciada.
Uma atitude anti-americana quase juvenil para políticos velhos de guerra, e justamente às vésperas de Barack Obama assumir a presidência dos Estados Unidos.
Houve de tudo na reunião, desde a louvação pela entrada de Cuba no Grupo do Rio como um gesto de independência da América Latina, quanto a bravata de Evo Morales, ameaçando com a retirada de embaixadores caso o novo governo dos Estados Unidos não acabe com o embargo contra Cuba.
Nenhuma palavra acerca dos presos políticos da ditadura cubana, nenhum protesto contra o desrespeito aos direitos humanos na ilha de Fidel. Por que não fazer pelo menos como os chanceleres da União Européia, que levantaram as sanções diplomáticas impostas em 2003, mas impuseram condições.
Se dentro de um ano as "reformas" insinuadas por Raúl Castro não se mostrarem eficazes e a ilha não estiver realmente no rumo da democracia, o assunto será revisto. Só mesmo enclausurados em uma máquina do tempo é possível esquecer que Fidel Castro, em 2003, ordenou a prisão de 75 dissidentes políticos, e a execução sumária de três cubanos que pretendiam fugir para os Estados Unidos.
E não é preciso ser adversário político para cair nas malhas da ditadura cubana. Há o exemplo infamante para nós do pugilista Erislandy Lara, que, nos Jogos Pan-Americanos, pediu asilo ao Brasil e foi recambiado para Cuba por ordem do governo brasileiro. Fugiu novamente, e hoje está na Alemanha.
E há o escritor Reinaldo Arenas, cuja homossexualidade foi considerada um "desvio de conduta" e um rompimento com a ditadura castrista, que o enviou para um campo de reeducação da UMAP (Unidad Militar de Ayuda a la Producción).
Seu depoimento diz tudo: "Minha infância e minha adolescência transcorreram sob a ditadura de Batista e o resto de minha vida sob a ditadura ainda mais feroz de Fidel Castro; jamais seria um verdadeiro ser humano, no sentido mais completo da palavra".
Se a chegada à Presidência de Barack Obama pode ser considerada um avanço histórico na democracia dos Estados Unidos, o que dizer da inclusão de Cuba no Grupo do Rio? A máquina do tempo quebrou na América Latina. |