Miriam Leitão O destino do Rio
Política

Miriam Leitão O destino do Rio


O GLOBO,


PANORAMA ECONÔMICO

O Rio tem um mistério. Perdeu peso, mas continua sendo os olhos e o termômetro do Brasil. A semana passada foi difícil. A derrubada do helicóptero da Polícia Militar pelo tráfico de drogas, a morte do Evandro do AfroReggae e o comportamento criminoso dos policiais militares trouxeram de volta a consciência dos fracassos e os dilemas nacionais em relação à segurança pública

As autoridades de diversos níveis proclamam avanços e sucessos. Se estivessem certas, não estaríamos na situação em que estamos. Durante a semana, eu conversei com pessoas que estão em pontos diferentes desta questão, e a única conclusão geral é que estamos prisioneiros de várias armadilhas.

A polícia estadual — Civil e Militar — sente que briga em condições desiguais. Não tem armas, os salários são baixos, a tentativa de compra de armamento esbarra na burocracia do Exército. Enquanto isso, os traficantes compram armas potentes por telefone e pedem que o serviço “armadelivery” inclua a montagem do produto. Então a solução é simples: equipar a polícia.

A tragédia do AfroReggae lembrou que nada é simples.

Que polícia vamos armar? A que deixa agonizante na calçada um cidadão, rouba o fruto do roubo e libera os assassinos? Na noite de quarta-feira, os sentimentos eram mistos em quem tinha ido ao Teatro Carlos Gomes, no Centro do Rio. Era um dia de festa do AfroReggae. A nova orquestra de cordas, com crianças e adolescentes, tocou com veteranos como Anderson Sá, músicas novas e antigas como a que diz “eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”. Poesias dos grandes poetas brasileiros ressoavam no teatro nas vozes de grandes atores.

Dona Ivone Lara subiu ao palco como uma das homenageadas do prêmio Orilaxé.

A jovem atriz Mariana Ximenes, chamada para entregar o prêmio, curvou-se longamente em homenagem à rainha negra. Mesmo sendo um monumento da cultura brasileira, Dona Ivone tremia. Disse que o coração batia forte de emoção pelo peso de receber o Orilaxé.

A palavra quer dizer “a mente tem o poder de transformar”.

Naquele dia, os dirigentes do AfroReggae, como José Junior, tinham a mente dividida entre a tragédia e a festa. Anualmente eles festejam pessoas e instituições que transformam realidades com sua arte ou ação. Mas pouco antes do evento viram as estarrecedoras imagens da morte do companheiro. O grupo trabalha resgatando e protegendo jovens do aliciamento pelo tráfico de drogas.

Luta contra a atração que as crianças das favelas sentem pela vida dos bandidos. Oferece um outro destino: o da música, arte, valorização pessoal, educação, orientação.

Evandro, pedagogo, fazia isso em Parada de Lucas.

O grupo trabalha também para pacificar a relação entre polícia e comunidade, tentando desmontar os preconceitos recíprocos.

Evandro foi vítima dupla: dos bandidos e da polícia.

Parecia hora de desistir.

E eles tocaram música, exibiram as crianças e jovens, homenagearam quem mereceu e avisaram que continuarão lutando contra os conflitos intratáveis do Rio.

Do debate da semana, ficam algumas certezas. A Polícia Federal tem que fazer mais intensamente seu trabalho de combater o tráfico de drogas e armas, principalmente porque no Rio os grupos de bandidos estão se armando uns contra os outros numa corrida frenética pelo controle de território.

O governo Federal não é auxiliar na segurança, seu trabalho não é oferecer ajuda, mas o de fazer mais do que tem feito. É ator fundamental com tarefas específicas ditadas pela Constituição e com o indelegável dever de proteger o país. As polícias do Rio têm que continuar o trabalho em várias frentes: lutar contra o crime, combater sem trégua a corrupção policial, ampliar as experiências das unidades pacificadoras.

Minhas conversas me convenceram que continua a torre de babel. Cada lado fala uma língua. O governo local acha que a Força Nacional só pode entrar em caso de emergência e em eventos como o Pan, mas nunca será a solução na rotina da violência, num terreno que desconhece. O Exército diz que nunca foi treinado para o papel de polícia, e que, se vier, não será para se submeter ao comando de autoridades estaduais, porque seria uma inversão de hierarquia.

As autoridades locais de segurança acham que só elas podem comandar quaisquer outras forças que vierem, porque conhecem o terreno e as dificuldades locais.

O governo Federal está feliz com os cursos de capacitação que oferece e que complementam os salários dos policiais, e com programas que parecem mais bonitos no papel do que na realidade. Alguns especialistas acham que é preciso fundir polícias Civil e Militar, mas as duas forças resistem à união. O Exército diz que pode até diminuir a burocracia para compra de armas, mas defende o privilégio do acesso a certas armas, e o monopólio da Imbel. A Secretaria de Segurança do estado admite que há áreas do Rio onde consegue entrar, mas não pode ficar. O Exército Brasileiro aprendeu na favela de Belair, no Haiti, que só ganha a guerra quem pode permanecer no terreno que entrou. Todos sabem que inaceitável e perigoso é o Estado perder controle sobre parte do território.

O problema das mil facetas tem também mil reflexos na política, na economia, no esporte, na vida do país. O secretário Nacional de Segurança, Ricardo Balestreri, admitiu que quando o Rio é atingido, o cidadão do Acre, do Amapá, do Rio Grande do Sul se sente mais inseguro e acha que a violência está aumentando na sua própria cidade. O Rio tem esse mistério: é a cidade de todos. O destino do Rio é o destino do Brasil.

oglobo.com.br/miriamleitao • e-mail:
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COM ALVARO GRIB




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