O Globo
Uma mulher de 24 anos levava sua filha no colo, andando pela Favela Kelson, no último fim de semana. Foi derrubada com um tiro de fuzil pelas costas e morreu. O bebê de 11 meses também foi baleado e sua vida corre risco. Quem viu a cena diz que a polícia entrou atirando. Polícia ou bandidos, Ana Cristina Costa do Nascimento foi vítima de uma bala perdida e morreu. Um episódio como este provocaria reações indignadas em qualquer país ou cidade do mundo. E no Rio de Janeiro, ouvimos vozes indignadas? Só dos moradores da Kelson.
Desde o último dia 17 de outubro já morreram mais de 40 pessoas nos embates entre a polícia e os traficantes.
Todas nas áreas mais pobres desta triste cidade. Quatro delas são “vítimas inocentes”, segundo a própria polícia. E, nesta conta, não somaram a morte de Ana Cristina.
Temos ouvido críticas a um governo que optou pela estratégia do confronto permanente que provoca mortes de todos os lados? Mortes entre os bandidos e entre policiais, inclusive os tripulantes do helicóptero da PM, transformados em “camicazes involuntários”, nas palavras do juiz Walter Maierovich? E mortes entre aqueles que não têm condição de morar em outro lugar a não ser nas favelas controladas pelo poder armado do tráfico ou das milícias. Não, não ouvimos vozes indignadas.
Ao contrário, só ouvimos vozes que parecem acreditar que violência se combate com violência.
Só ouvimos vozes a entoar que nunca antes, em nosso estado, a polícia foi tão firme ou o governo enfrentou os bandidos com tanta disposição.
E, o que é pior: a banalização da morte chegou a tal ponto que muitos já não se emocionam mais com coisa alguma. Ricardo Noblat, nas páginas deste jornal, narrava outro dia que um amigo seu, ao se referir à morte do Evandro do AfroReggae, disse que morria gente todo dia no Rio; logo, por que tanto espanto? Com a Instalação das chamadas Unidades Pacificadoras, particularmente aquelas do Santa Marta e do Leme (porque, afinal de contas, na Cidade de Deus o “sucesso” é discutível e no Batan a iniciativa tem caráter diferenciado), o governo estadual obteve sucesso.
No entanto, o marketing foi, no mínimo, exagerado.
Afinal de contas, isto é uma gota num oceano de problemas. São 1.020 favelas no Rio de Janeiro, a maior parte submetida ao controle armado de traficantes ou de milicia nos. Da Maré ao Alemão, da Providência ao Jacaré, da Rocinha ao Borel, do Vidigal ao Juramento, da Vila Aliança à Carobinha, de Camará ao Barbante, as coisas permanecem como sempre estiveram: bandidos armados controlando o território e gerenciando seus negócios, muitas vezes com a conivência da parte corrupta das polícias.
Está mais do que na hora de as autoridades deste estado, incluindo nosso governador, admitirem que a estratégia de combate à criminalidade que aposta no confronto fracassou. Vamos continuar aplaudindo a instalação das Unidades Pacificadoras, sim, mas devemos, enquanto sociedade que não quer apostar na barbárie, condenar uma polícia que continua a invadir favelas sem qualquer planejamento mais criterioso, mantém tiroteio com traficantes durante horas, submetendo populações locais ao pavor, com resultados pífios. Todo mundo sabe que tráfico de drogas existe em qualquer cidade do mundo. O que não se vê em outras cidades do mundo são traficantes e polícia fortemente armados, trocando tiros em vias públicas e áreas residenciais.
Continua-se repetindo como um mantra que isso é necessário para “combater” a criminalidade. Os resultados mostram, ao contrário, que isso só dissemina o terror, incita a sanha de vingança e amplifica a barbárie, sem qualquer efeito visível na redução do tráfico de drogas ou das armas ilegais em circulação
JULITA LEMGRUBER é socióloga e diretora do CESeC/Ucam.