Quaisquer que sejam as críticas que se possam fazer ao desempenho do governador José Serra diante das reivindicações da Polícia Civil de São Paulo, em inédita greve há mais de um mês, elas se tornam secundárias diante dos acontecimentos de extrema gravidade ocorridos nas proximidades do Palácio dos Bandeirantes, na tarde da quinta-feira - o violento e igualmente inédito confronto, que deixou mais de 20 feridos, entre os grevistas e os colegas enviados para contê-los, mas que a eles se aliaram, e os efetivos da Polícia Militar (PM) mobilizados para barrar-lhes o caminho até a sede do governo do Estado. A responsabilidade dos agentes civis amotinados é inteira e inequívoca, em primeiro lugar por terem se prestado a servir de massa de manobra de políticos a serviço de uma campanha eleitoral.
Com armas de fogo e viaturas - o primeiro dos seus ilícitos -, ocuparam uma área vedada a manifestações públicas desde 1987 por motivos de segurança. (Quatro anos antes, no início do governo Franco Montoro, uma multidão de desempregados chegou a derrubar as grades do palácio, antes de serem reprimidos.) É inconcebível que os policiais ignorassem a proibição. Mesmo se estivessem desarmados, não poderiam alegar inocência. Mas o pior de tudo, além do tiro de fuzil em direção ao palácio, do disparo que feriu um comandante da PM, da agressão a um tenente e da depredação de viaturas militares, foi a sua disposição de invadir o Bandeirantes.
Eles sabiam que o governador não receberia nenhuma comissão de grevistas, a propalada razão de ser da sua marcha - Serra havia deixado suficientemente claro que não dialogaria com a corporação enquanto a greve persistisse. E muito menos o faria sabendo que a passeata, quando não o próprio movimento, tinha sido apropriada pela oposição, às vésperas do segundo turno da eleição em que o candidato de que é patrono, o prefeito Gilberto Kassab, lidera as pesquisas. Comentando o confronto, Serra denunciaria a "participação ativa da CUT, que é ligada ao PT, e da Força Sindical, ligada ao PDT" - os primeiros, encabeçados pelo líder petista na Assembléia Legislativa, Roberto Felício; os segundos, pelo deputado federal pedetista Paulo Pereira da Silva.
E foi ele o instigador da tentativa de invasão, afinal bloqueada pela PM. Em dado momento, arengou, do carro de som: "Não adianta ficar na praça. O cara que manda está lá em cima." A reação dos amotinados, registrada pela imprensa, foi a de aplaudir e gritar: "Vamos lá, vamos lá." O delegado supervisor do Garra, um dos três grupos de elite da Polícia Civil dos quais se esperava que contivessem a multidão, Oswaldo Nico Gonçalves, advertiu os políticos e os sindicalistas para "não inflamarem o discurso" - mas inflamar os ânimos era exatamente o que pretendiam. Muito se falou, a propósito, do presumível "erro de planejamento" da cúpula da Secretaria da Segurança, que acionou a Polícia Civil e a Militar contra a manifestação.
"Não se manda o amigo do amotinado ajudar a Tropa de Choque a sufocar a rebelião", critica o coronel da reserva Francisco Profício, que comandou a PM nos anos 1990. Mas a questão de fundo não é a tática e, sim, a política. Na esteira de uma reivindicação salarial em princípio pertinente - a Polícia Civil paulista é notoriamente mal paga -, fabricaram-se as condições para um incidente de impacto que deixaria na berlinda o governador tucano, provável candidato à sucessão presidencial de 2010 - e, por tabela, o seu candidato a prefeito de São Paulo. E os cabeças-quentes da corporação só faltaram imitar os seus colegas alagoanos rebelados que apareciam na televisão brandindo armas e com os rostos cobertos, numa réplica dos bandos criminosos que deveriam reprimir.
Não é trivial, assinale-se, lidar com o desafio do que os estudiosos do setor denominam "greve armada!" (ou com o da sindicalização das polícias). Mas é certo também que o governo do Estado não poderia ter deixado as coisas chegarem ao ponto a que chegaram, facilitando a vida dos aproveitadores políticos de prontidão. Agora, consumados os fatos, os agressores terão de ser identificados e punidos nos termos da lei que disciplina a conduta do funcionalismo e do Código Penal. Mas isso não bastará. Está de pé, mais do que nunca, o problema do convívio profissional das duas polícias. E, vai sem dizer, o imperativo de apagar o estopim da crise. Resta saber se o Palácio dos Bandeirantes terá a necessária lucidez para tanto.
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