O Manifesto dos 70 conseguiu marcar definitivamente os últimos dias. Originou o que se pretende com este tipo de iniciativas: agitar as águas, gerar discussão e, sobretudo, obrigar os vários atores a posicionarem-se sobre um tema fraturante. E, de forma quase maniqueísta, foi sobretudo a esta última dimensão que assistimos na sequência da divulgação pública do documento. A reestruturação da dívida ficou no centro da discussão política, obrigando a uma dissecação dos argumentários a favor e contra este tipo de ação.
Do lado dos que concordam com a reestruturação, os argumentos são claros: as condições impostas são pura e simplesmente impossíveis de concretizar. Portugal teria de ter nos próximos 20 anos um desempenho económico que nenhum país europeu conseguiu ter durante mais do que 2 ou 3 anos. Teriamos de manter níveis de austeridade extremos, lado a lado com taxas de consumo e de crescimento verdadeiramente notáveis, o que se torna quase impossível em termos matemáticos. A reestruturação surge assim como uma atitude de realismo e até de responsabilidade, procurando encontrar condições que permitam, por um lado, tirar o país do caos em que se encontra, ao mesmo tempo que são garantidas as condições para podermos pagar até ao último cêntimo o que lhe foi emprestado.
Do lado dos que se opôem ao manifesto, mais do que debruçarem-se sobre a possibilidade ou impossibilidade de cumprir as condições em vigor, centram-se tipicamente em duas grandes questões. Por um lado, os mais moderados que argumentam com o facto deste não ser o momento mais oportuno para se falar em reestruturação. Tal poderia assustar os nossos credores e os famigerados mercados. Por outro lado, os mais conservadores que sublinham que não se deve falar de reestrturação nem agora nem nunca, uma vez que tal representa uma violação das condições acordadas com os nossos credores.
Curiosamente, as referidas posições mais moderadas ou conservadoras parecem esquecer o que a verdadeira reestruturação das dívidas está já em curso. Não o está relativamente aos credores internacionais, é verdade, mas sim relativamente aos cidadãos portugueses que foram vendo o seu bolso ser constantemente remexido. Numa primeira fase, tentou-se amenizar tais abusos de confiança com o facto de serem supostamente provisórios. Os impostos aumentariam, mas apenas provisóriamente. Os salários e as pensões diminuiriam, mas apenas provisóramente. A austeridade seria uma catástrofe social, mas apenas provisóriamente. Subitamente, num estalar de dedos, o Governo começou a assumir o que há muito se suspeitava, mas que até então era negado a pés juntos. Passos Coelho chega mesmo a irritar-se agora com todos aqueles que presumiram que se tratava de algo provisório.
Esta sim tem sido a verdadeira reestruturação em curso: os cortes nos salários e pensões que se tornaram permanentes, os aumentos de impostos que vieram para ficar, a austeridade que é assumida como novo modelo de desenvolvimento. Os grandes reestruturadores, do Governo e da maioria que o apoia, pelos vistos não estão preocupados com esta violação das condições junto de quem os elegeu, junto de quem tinha direitos adquiridos, junto de quem trabalha e viu subitamente ser-lhe retirada parte do seu rendimento. Os grandes reestruturadores importam-se apenas com os grandes credores, com os contratos com eles firmados e com a reputação de seriedade para lá de Vilar Formoso.
Se calhar este grandes reestruturadores deviam fazer o seu próprio manifesto, sublinhando (a bem do país, claro) a importância de não serem mantidos os compromissos assumidos com os cidadãos. Isso é que era. Porque não? Fica feito o desafio.
Artigo hoje publicado no Açoriano Oriental
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