Rogério Werneck:A política fiscal exacerbou seu pior lado
Política

Rogério Werneck:A política fiscal exacerbou seu pior lado


O GLOBO

Professor da PUC critica aumento de gastos do governo Lula e alerta para desmanche de arcabouço institucional


ENTREVISTA
Rogério Werneck

BRASÍLIA. Observador arguto da cena nacional, o economista Rogério Werneck, professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio, é um crítico da política fiscal do governo Lula, marcada pela expansão dos gastos correntes. "Não há a menor dúvida de que a política fiscal em curso e a exacerbação do seu pior lado, no calor da campanha eleitoral de 2010, vão dar lugar a uma configuração de contas públicas delicada no próximo mandato presidencial", diz Werneck em entrevista ao GLOBO. Preocupado com o que chama de desmanche do arcabouço institucional que pautou a política econômica nas últimas décadas, Werneck alerta para o risco de o país desperdiçar o que conquistou a duras penas: a estabilidade fiscal e a credibilidade dos mercados para enfrentar crises como a atual.

Regina Alvarez

O GLOBO: O senhor tem criticado a elevação dos gastos correntes do governo, justificados como parte da política anticíclica para conter os efeitos da crise econômica. O resultado das contas públicas em maio já indicaria que a meta de superávit fiscal deste ano, de 2,5% do PIB (Produto Interno Bruto, conjunto de bens e serviços produzidos pelo país), está ameaçada?

ROGÉRIO WERNECK: Política fiscal anticíclica tem de ser feita com gastos reversíveis, dispêndios que possam ser suspensos quando a economia voltar a se recuperar. O que o governo está vendendo como política fiscal anticíclica é, em boa parte, aumento de gastos com funcionalismo e com benefícios da Previdência Social, decididos há muitos meses, quando a Fazenda ainda tinha uma visão rósea do futuro. São novos gastos recorrentes e incomprimíveis.

Não há como reduzilos quando a recessão for superada. O que se desenha no horizonte é um sério agravamento do quadro fiscal em que a meta não seria cumprida.

Em artigo recente, o senhor faz duras críticas ao que chama de "insensatez do desmanche": a destruição gradativa do arcabouço institucional que pautou a política econômica nas últimas décadas.

WERNECK: Tem havido uma conjunção de notícias inquietantes sobre medidas e propostas que, se levadas à frente, podem, de fato, solapar esse arcabouço institucional construído a duras penas. Não se pode culpar apenas o Planalto.

Da tentação do desmanche parecem compartilhar governo, oposição, congressistas, governadores e prefeitos. É como uma festa improvisada. Cada um se sente à vontade para trazer sua receita preferida de insensatez.

O senhor poderia citar alguns exemplos?

WERNECK: A lista parece interminável.

Renegociar dívidas dos governos subnacionais com a União. Aparelhar o Banco do Brasil e tentar forçar que baixe juros na marra. Assegurar em lei que, até 2023, o salário mínimo tenha sempre reajuste real igual à taxa de crescimento do PIB.

Remontar, no melhor estilo portenho, um guichê de distribuição de favores fiscais a estados e municípios em Brasília. Propor, a essa altura do campeonato, que o Planalto volte a exercer estrito controle sobre a condução da política monetária pelo Banco Central. Institucionalizar um calote escandaloso das dívidas de precatórios. Disfarçar de política fiscal anticíclica o que é simples descontrole das finanças da União.

Essa mudança de postura ameaça a propalada solidez da economia? Esse risco já seria percebido pelos mercados?

WERNECK: Por enquanto, os mercados andam bastante otimistas com o Brasil. E parte desse vale-tudo que acabei de mencionar tem a ver com a avaliação de que tal otimismo assegura amplo espaço para todo tipo de insensatez. É preciso ter em conta, no entanto, que boa parte da resistência da economia brasileira ao choque desestabilizador da atual crise mundial se deve à enorme redução de incerteza que, especialmente após a transição de 2002-2003, adveio da consolidação do arcabouço de regras e instituições que pautam a condução da política econômica no país. Seria completa falta de juízo deixar que se dissemine agora a percepção de que, aos poucos, tais regras e instituições estão sendo desmanteladas.

O governo optou pela redução da meta de superávit fiscal primário alegando que isso não poria em risco a queda da relação entre dívida e PIB. Essa queda estaria ameaçada?

WERNECK: É preciso ver a atual política fiscal da perspectiva adequada. O governo vinha se beneficiando, já há algum tempo, de um quadro em que sua receita tributária crescia, ano após ano, o dobro da taxa de crescimento do PIB. Até meados do ano passado, o Planalto vinha apostando num final de mandato apoteótico, regado a gasto público em vertiginosa expansão. Nos últimos meses, contudo, viu-se obrigado a lidar com novas circunstâncias. A "marolinha" da crise mundial não só matou o crescimento da economia brasileira como fez surgir um quadro recessivo grave.

Mas o governo não se abalou.

Simplesmente se enrolou na bandeira da política fiscal anticíclica e manteve imutável a vertiginosa expansão de gastos.

E ainda se deu ao luxo de conceder reduções de impostos a setores com lobby mais eficaz.

Do ponto de vista do gasto público, a ideia parece ser manter o plano do final de mandato apoteótico, não obstante toda a queda de receita.

À luz desse quadro fiscal, qual o seu prognóstico para a trajetória da dívida pública?

WERNECK: O mais provável é que a dívida como proporção do PIB volte a se elevar em boa medida, não obstante a redução substancial de taxa de juros observada nos últimos meses. O governo poderia decidir não implementar certas decisões de aumento de gastos de custeio, como as de reajuste de salários do funcionalismo. Mas o que se noticia é que essa possibilidade foi julgada excessivamente custosa, tendo em vista que o cálculo político do Planalto anda cada vez mais focado em 2010.

Qual seria a sua receita para a retomada da atividade econômica sustentada, sem risco para a estabilidade fiscal?

WERNECK: Teria sido muito mais defensável se a política fiscal anticíclica estivesse baseada em ampliação de programas de investimento público, mais fáceis de reverter após a crise e indutores de uma recuperação complementar do investimento privado.

Há um consenso entre os governantes de que é preciso ampliar os investimentos públicos.

O que impede isso na prática?

WERNECK: Há muito tempo a economia brasileira vem lidando com séria atrofia do investimento público. Num primeiro momento, isso se deveu à necessidade de acomodar a expansão explosiva de gastos correntes no Orçamento, apesar do brutal aumento de carga tributária.

E não há dúvida de que será necessária séria contenção dos gastos correntes nos próximos anos para abrir espaço para um aumento substancial de investimento público.

Mas a falta de recursos não é o único entrave.

Falta priorizar os investimentos ou o problema é de gestão?

WERNECK: Há que se lamentar a oportunidade, agora perdida, que adveio da substancial redução do pagamento de juros sobre a dívida pública, propiciada pela queda de taxa de juros observada nos últimos meses. O governo preferiu usar essa folga orçamentária para expandir gastos recorrentes de custeio, em vez de aumentar seus investimentos. Nos primeiros cinco meses de 2009, o aumento de gastos do governo central com pessoal e benefícios previdenciários foi mais de 11 vezes maior que o aumento de investimento! Isso mesmo: 11 vezes. Mas a cada dia fica mais claro que a atrofia do investimento público no Brasil não decorre somente da escassez de recursos. Mesmo quando há dotação orçamentária, o governo tem mostrado enorme dificuldade em fazer o investimento acontecer. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) tem sido um exemplo vivo e multifacetado dessas dificuldades.

Há o risco de o próximo governante receber como herança um Orçamento totalmente comprometido com gastos correntes?

WERNECK: Embora boa parte dos analistas esteja propensa a enxergar uma recuperação da economia em 2010, é difícil vislumbrar uma retomada suficientemente vigorosa para propiciar melhora espetacular das contas públicas. Não há a menor dúvida de que a política fiscal em curso e a exacerbação do seu pior lado, no calor da campanha eleitoral de 2010, vão dar lugar a uma configuração de contas públicas delicada no próximo mandato presidencial. O mais provável é que a expansão desmedida de gastos de custeio, num quadro de preservação da rigidez de gastos que hoje se observa, deva requerer carga tributária ainda mais alta para manter as contas fiscais sob controle.

O que piora as perspectivas de crescimento do país.

Políticos da oposição, em especial o governador José Serra (PSDB), concentram suas críticas na atuação do Banco Central.

A autoridade monetária tem cometido erros?

WERNECK: É sempre possível apontar erros na política monetária.

Mas salta aos olhos que, nos últimos anos, o Banco Central (BC) tem mostrado ser a parte mais racional, previsível e consistente do aparato de condução da política macroeconômica no país. É difícil sustentar a acusação de que o BC tem sido sempre excessivamente conservador. Ao longo de uma década de experiência com o regime de metas, a taxa de inflação ficou mais acima da meta do que abaixo. É fácil tentar demonizar o BC, defender que deve ter menos independência e arguir que, se a taxa de juros tivesse caído mais rapidamente nos últimos meses, a recessão teria sido muito mais moderada e a apreciação do câmbio, muito menor.

O preocupante, contudo, é que a oposição ache que, se repisar essas críticas altamente discutíveis, não precisa ter mais nada a dizer sobre o resto da política econômica. O que se teme é que a oposição queira mais uma vez, tal como em 2002 e 2006, voltar a disputar a Presidência com um discurso escapista que passe totalmente ao largo da questão fundamental que o país tem pela frente, que é a agenda fiscal.

O governo preferiu usar essa folga orçamentária para expandir gastos recorrentes de custeio, em vez de aumentar seus investimentos




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