O GLOBO - 12/06/11
Os fatos políticos recentes podem indicar que estamos caminhando perigosamente para um sistema político que se aproxima muito do hiperpresidencialismo, caracterizado pelo excesso de poderes concedidos ao Executivo, o que pode levar à deterioração da democracia, ou até mesmo à sua destruição.
Esse fenômeno pós-moderno está se alastrando pela América Latina e atinge algumas partes do mundo, como a Rússia.
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de aceitar que a decisão sobre a extradição do ex-terrorista italiano Cesare Batistti coubesse ao presidente Lula, mesmo sem que os termos do tratado fossem obedecidos, na prática deu poderes discricionários ao chefe do Executivo, poderes que já haviam sido negados em reunião anterior do mesmo Supremo.
Também a escolha das principais assessoras diretas da Presidência ter recaído sobre políticas pouco afeitas à negociação, que assumem como principal tarefa fazer com que a vontade do Executivo seja acatada pelo Legislativo, indica uma tentativa de utilizar a maioria esmagadora que forma a base parlamentar do governo para, simplesmente, referendar a vontade do Executivo.
O sistema presidencialista oferece ao chefe do Executivo muitas alternativas legais para contornar o Poder Legislativo, e os presidentes têm mais flexibilidade para montar seus ministérios.
Enquanto no parlamentarismo os governos são organizados essencialmente pelos componentes dos partidos que formam sua base parlamentar, no presidencialismo é possível escolher ministros de acordo com critérios próprios, e até mesmo levando em conta apenas as relações pessoais.
Por isso, diz-se que uma das virtudes que devem ser evitadas, ao se montar uma equipe de governo, quando se deseja governar democraticamente, é, paradoxalmente, a lealdade do escolhido.
Essa lealdade leva a que pessoas não qualificadas, mas leais ao presidente da República, assumam postos importantes nos governo com a única certeza de que não se voltarão contra quem os escolheu.
Há quem defina o hiperpresidencialismo como uma ditadura disfarçada, cuja fronteira para a ditadura de fato é a liberdade de imprensa, que geralmente não existe em países que já adotam esse sistema de governo, como na Venezuela e na Rússia.
A partir do caso da Rússia, os estudiosos dos sistemas de governo dizem que a fragmentação partidária pode levar a que o Executivo estimule uma maioria circunstancial que favoreça a aprovação de sistemas autoritários.
O mesmo fenômeno que acontece na América Latina, com governos se utilizando dos mecanismos democráticos para aprovar leis que lhes conferem superpoderes, colocando o Executivo acima dos outros poderes, fazendo com que o sistema democrático perca sua característica de contrapesos.
Foi o que aconteceu na sessão em que o Supremo acatou uma decisão presidencial claramente fora dos parâmetros legais que regem a extradição pelo tratado assinado entre Itália e Brasil.
Na avaliação do ministro do Supremo Gilmar Mendes, está se criando um modelo de presidencialismo imperial, com o STF submetido à Presidência da República.
Baseando-se no tratado de extradição, como determinou o Supremo, a Advocacia Geral da União (AGU) utilizou, para sustentar a decisão de manter Battisti no país, o seu artigo 3º, que diz que é suficiente o presidente ter "razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados".
O refúgio concedido inicialmente pelo Ministério da Justiça com base nessa mesma argumentação fora indeferido pelo STF, que, num primeiro julgamento, decidiu que não havia perseguição política nem outra justificativa para sua concessão.
A palavra-chave no julgamento foi e continua sendo "discricionário". Os ministros que votaram a favor de que cabia ao presidente da República a decisão final sobre a extradição consideraram que ele tinha poderes "discricionários" para decidir.
Dias depois, questionado pelo governo italiano por uma questão de ordem, o então ministro Eros Grau admitiu que seu voto não dava poderes "discricionários" ao presidente da República, mas limitava sua decisão ao tratado de extradição existente.
Ao insistir em não extraditar Battisti alegando as mesmas razões que o Supremo já havia rejeitado, o então presidente Lula agiu como se tivesse poderes discricionários, e, ao aceitar sua decisão esta semana, o Supremo chancelou esse entendimento, que fora rejeitado.
Outro assunto diretamente ligado à autonomia dos poderes do Estado deve ser discutido esta semana: a proposta do senador Aécio Neves, que altera a apreciação das medidas provisórias pelo Congresso, subordinando na prática as medidas provisórias - que se transformaram em um instrumento do hiperpresidencialismo - à decisão do Congresso.
A ideia central da proposta é que as medidas provisórias somente terão força de lei depois de serem consideradas admitidas pelo Congresso Nacional, dentro dos critérios de relevância e urgência hoje existentes.
Caso contrário, a matéria passaria automaticamente a tramitar como projeto de lei em regime de urgência constitucional.
A admissibilidade será apreciada por comissão mista permanente de deputados e senadores, em processo sumário, com recurso para o plenário do Congresso ou, nos períodos de recesso, pela Comissão Representativa.
A presidente Dilma já se manifestou contrária à medida, orientando sua aliança partidária a rejeitá-la. Singelamente, teria comentado: "Logo na minha vez querem me tirar um instrumentos fundamental de governabilidade".
Há, no entanto, na própria base governista, uma tendência a aprovar a mudança, que dá ao Congresso maior autonomia.
Será mais uma oportunidade para estancar o avanço do Executivo sobre o Legislativo, ou confirmar nossa caminhada rumo ao hiperpresidencialismo.
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