Política
Tempos modernos Merval Pereira
NOVA YORK. Já ficou famosa a cena de um comício recente em que um eleitor republicano pede a palavra e diz a McCain que está preocupado com o socialismo tomando conta do governo. Ele se referia à decisão do governo George Bush de estatizar bancos. No debate de quarta-feira, foi a vez de o candidato republicano dizer que seu adversário, Barack Obama, estimula a luta de classes. Ontem, governos da França e da Alemanha anunciaram que, na nova regulamentação do sistema financeiro, os chamados “paraísos fiscais” têm que desaparecer. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, defende nada menos que a “refundação” do capitalismo para que as finanças estejam a serviço dos negócios e dos cidadãos, e não como estaria acontecendo hoje. Enquanto isso, no “socialismo de mercado” da China, o capitalismo chega ao campo para garantir a produtividade agrícola.
Ao contrário de indicar o fim do capitalismo, ou pelo menos do neoliberalismo, como acreditam muitos esquerdistas, especialmente no Brasil, a intervenção governamental de vários países no sistema financeiro internacional é uma repetição do que vem acontecendo através dos anos ciclicamente. Nomes míticos do sistema financeiro dos Estados Unidos, como o Salomon Bros, simplesmente desapareceram nas crises.
De 1945 até hoje, cerca de 60 grandes instituições bancárias foram vendidas, incorporadas ou fechadas. Nada menos que 10 mil bancos, entre pequenos e grandes, quebraram na década de 30 do século passado, durante a Grande Depressão. Na época, o presidente Franklin Delano Roosevelt teve que declarar feriado bancário de 90 dias e criou uma agência, a Reconstruction Finance Corporation, para resgatar bancos, empresas e até prefeituras. A recriação dessa agência está nos planos de Barack Obama a serem anunciados.
A atual onda de críticas à ganância de Wall Street, ecoada até pelo republicano McCain, tem também precedentes, e houve épocas tanto de desregulamentação excessiva, que permitiu a especulação financeira que era considerada benéfica para a produção de riqueza, como também épocas de ação direta do governo, criando distorções no mercado, algumas repercutindo agora, como a atuação das gigantes hipotecárias Fannie Mae e Fred Mac, hoje novamente estatizadas.
Essas “empresas apoiadas pelo governo” (Government Sponsored Enterprises) foram criadas por ações do governo, a Fannie Mae (Federal National Mortgage Association) em 1938, por Franklin Delano Roosevelt, durante o New Deal, permitir que os cidadãos tivessem acesso a financiamentos para a casa própria depois da crise econômica provocada pela quebradeira da Bolsa, em 1929.
Foi privatizada em 1968 para conter o déficit orçamentário provocado pela Guerra do Vietnã, mas sob regime especial.
A Freddie Mac (Federal Home Loan Mortgage Company) foi criada em 1970, no governo Nixon, para expandir o mercado secundário de hipotecas.
Esse tipo de empresa tem apoio implícito do governo, e foi para honrar esse compromisso que o Tesouro interveio agora. Mas em 1999, no fim do governo democrata de Clinton, as duas empresas sofreram fortes pressões para dar empréstimos a famílias de baixa renda, mesmo sem condições de crédito.
Há quem veja nessa ação política populista do governo Clinton o começo da bolha imobiliária que só agora estourou.
O surgimento dos chamados “junk bonds”, ativos de alto risco mas elevada rentabilidade, criou o cenário para mais especulação.
Há também quem defenda a idéia de que ganância e “especulação” são parte importante do capitalismo. A década de 80 do século passado foi marcada pela desregulamentação do mercado financeiro, que, com as rédeas soltas, produziu novos produtos financeiros e espalhou pelo mercado o lema “Greed is good” (“Ganância é bom”) de Michael Milken, um dos financistas mais controversos do moderno capitalismo, criador dos “junk bonds”.
Considerado gênio por muitos, condenado à prisão por fraudes financeiras, Milken cumpriu apenas 22 meses de uma condenação de dez anos e está solto desde 1993, mas proibido de atuar no mercado. Ainda é um dos homens mais ricos do mundo, com uma fortuna de cerca de US$ 2 bilhões.
Se pode ser verdade que não existe pura e simplesmente ganância, mas necessidade natural de acumulação do capital, não é menos verdade que o sistema financeiro precisa de uma maior regulação para defender o capitalismo de crises como a que está se desenrolando.
Nos últimos quatro ou cinco anos houve, segundo o professor de Harvard Ken Rogoff, “o mais forte ciclo de expansão da economia mundial, do comércio internacional e da liquidez global da história moderna”, produzindo muita riqueza pelo mundo, mas as instituições financeiras ficaram sob forte pressão para obter resultados diante do apetite por risco do mercado.
A redução generalizada das margens de segurança não foi percebida pelas agências de risco, que agora, na nova regulamentação, não poderão mais receber dinheiro das empresas que avaliam.
O presidente da Moody’s, uma das principais agências de risco, Raymond W. McDaniel Jr., já admitira em janeiro deste ano, na reunião do World Economic Forum, em Davos, que as agências de risco têm boa parte da culpa pela crise de crédito.
Disse que “houve uma deterioração nas informações geradas pelas instituições financeiras, tanto em veracidade quanto em extensão”, o que fez com que o modelo de análise com que trabalham ficasse superado.
De lá para cá, pouca coisa mudou, no entanto. A empresa japonesa New City Residence, de investimentos imobiliários, quebrou quando ainda era avaliada pela Moody’s como “triple A”. O mesmo erro aconteceu com a AIG seguradora e o Lehman Brothers.
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