Wanderlino T. Leite Netto(*)
Mudavam-se à revelia. Por vontade própria, Aurélio e Mercedes permaneceriam no velho apartamento. Mas, aos oitenta, os desejos trocam de dono. Os filhos haviam decidido tê-los por perto, assim seria. Impotentes, presenciam a profanação de seus guardados. Os filhos, o genro, a nora, os netos, remexem armários e gavetas. Urge selecionar o que os homens da transportadora irão embalar e eles não tardam.
Mercedes vê os sacos de retalhos dos mais variados tecidos serem postos de lado. Aurélio não entende o descarte dos papéis de embrulhar pão, dos pedaços de barbante, das bulas, das caixas e dos vidros de remédios vazios. Afinal, estavam todos meticulosamente arrumados...
Miçangas e paetês espalham-se pelo chão, assim como pedaços de isopor, purpurina, velas de aniversários e enfeites de Natal.
Do bojo de um armário, saem sapatos fora de moda, bolsas dos mais diferentes feitios e tamanhos, alguns chapéus, todos vetados por uma comissão de netos.
Enquanto o genro amontoa junto à lixeira jornais amarelecidos, a filha descarta bibelôs. Os álbuns de retratos sofrem verdadeira pilhagem, cada um abocanha um naco do passado. Quando chega o pessoal da transportadora, tudo está definido.
Aurélio e Mercedes entreolham-se. A cumplicidade de mais de meio século é suficiente para indicar-lhes o que fazer. De uma pasta de couro, já um tanto desbotada, retiram os documentos. Com tesouras de ponta fina, em silêncio, picotam as cédulas de identidade.
(NETTO, Wanderlino Teixeira Leite. Laços de afeto. In: Retrato sem moldura. Niterói: Clube de Literatura Cromos, 1999).
(*)Wanderlino Teixeira Leite Netto nasceu na cidade do Rio de Janeiro e reside em Niterói desde os 4 anos de idade.
Poeta, cronista, contista, ensaísta, biógrafo, historiador (19 livros editados); trabalhos publicados em antologias, jornais e revistas.
Pertence aos quadros da Academia Niteroiense de Letras e do Instituto Histórico e Geog