Política
Valores mais altos Merval Pereira
O GLOBO
NOVA YORK. Todas as decisões tomadas ontem pelo presidente Barack Obama com relação ao combate ao terrorismo têm a mesma raiz: fazer valer a letra da lei, não colocar a busca da segurança nacional acima dos direitos humanos essenciais a uma democracia. Fechar a prisão de Guantánamo, mesmo que num prazo de um ano, é a decisão mais visível, mas acabar com as prisões secretas que a CIA mantêm pelo mundo afora é reforçar a tese de que nem mesmo o combate ao terrorismo justifica que agentes do governo americano ajam fora da lei.
Expedir uma "ordem executiva", o equivalente a um decreto-lei brasileiro, proibindo a tortura, é espantoso em uma democracia, mas fez-se necessário porque outra "ordem executiva" do ex-presidente George W. Bush permitia o uso de "técnicas aprimoradas de interrogatório" nas prisões secretas e também nas oficiais Guantánamo e Abu-Gahbri, técnicas que seriam consideradas torturas se utilizadas dentro do território nacional.
Um programa secreto da CIA, a agência de espionagem americana, começou a ser implantado logo depois dos atentados de setembro de 2001, e somente mais de cinco anos depois, em 2007, foi suspenso oficialmente pelo governo americano, devido a uma decisão da Suprema Corte.
Mas suspeita-se que algumas prisões ainda estejam em funcionamento, por isso a "ordem executiva" de Obama, fechando as que eventualmente ainda funcionem, e proibindo suas técnicas de interrogatório.
Esse programa permitia que acusados de terrorismo fossem detidos indefinidamente em prisões secretas, chamadas de "buracos negros", onde as regras da Convenção de Genebra não eram respeitadas por uma decisão pessoal do presidente Bush.
Todos os prisioneiros dessas prisões foram teoricamente transferidos para Guantánamo, e por isso agora a nova administração terá um ano para encontrar uma maneira de alojá-los enquanto aguardam julgamento por tribunais americanos, ou de enviá-los para outros países.
Há casos em que um prisioneiro como Majid Khan, residente em Baltimore, foi mantido em isolamento durante três anos, sem mesmo acesso a um advogado. O isolamento dos prisioneiros era considerado um dos pontos-chaves da política antiterror anteriormente em vigor.
A jornalista Jane Mayer, da revista "The New Yorker", é uma das principais denunciantes do sistema ilegal de combate ao terrorismo montado no governo Bush, sob a orientação do vice-presidente Dick Cheney.
Ela lançou, ano passado, um dos melhores livros sobre o assunto - "O lado negro" -, onde detalha as denúncias que havia feito em diversas reportagens nos últimos anos. Segundo seu relato, corroborado mais tarde pela divulgação de um relatório do Senado, a criação de um grupo dentro da CIA para "caçar, capturar, deter ou matar" acusados de terrorismo foi autorizada uma semana depois dos atentados.
Embora a CIA não tivesse treinamento para esse tipo de ação, as exigências fizeram com que se buscasse nos arquivos as experiências de guerras anteriores. Os programas vieram das guerras da Coreia e do Vietnã, com especialistas militares já aposentados que tinham experiência em treinamento de soldados para resistir às torturas caso caíssem prisioneiros do inimigo.
O programa, chamado Sere - de "Sobrevivência, Evasão, Resistência e Escapada" -, ensinava a resistir a torturas como o afogamento simulado, privação de sono, resistir a permanecer em locais abafados, humilhação religiosa e sexual.
Todas essas técnicas acabaram sendo utilizadas em prisões como Guantánamo e Abhu-Gahbri pelos militares americanos, e causaram perplexidade no mundo ao serem reveladas, inclusive com fotografias.
O que, a princípio foi atribuído a um grupo de militares com distorções de comportamento acabou revelando-se um programa oficial do governo dos Estados Unidos, o que trouxe mais danos ainda à imagem internacional do país.
Quando o novo presidente assume garantindo ao mundo que não há incompatibilidade entre a guerra ao terror e o respeito à dignidade humana, e, mais que isso, no segundo dia na Casa Branca toma medidas concretas para acabar com essas práticas e dar transparência à política de segurança nacional, tudo se encaixa num mesmo modelo de governo que pretende prestigiar os antigos valores morais da democracia.
Da mesma maneira que, ao indicar negociadores especiais para questões internacionais que estão na ordem do dia, como o Oriente Médio, o novo governo mostra que não está perdendo tempo para encarar seus desafios.
Os primeiros dias foram dedicados à política externa, mas isso não significa que a questão econômica esteja fora das prioridades. Ao contrário, o plano de recuperação econômica que já está sendo negociado no Congresso tem indicações claras de como o novo governo pretende encarar a tarefa mais imediata de criar empregos
O que o presidente Obama tenta é encontrar um ambiente político de convergência para que a recuperação do país, que será longa e penosa, possa ser alcançada em clima de união nacional.
O que não se sabe ainda é se os republicanos aceitarão esse pedido de trégua da pequena política para dar partida à recuperação nacional, ou se tentarão emparedar o novo governo com vistas às próximas eleições de 2010.
O novo enfoque da segurança nacional pode ser um calcanhar-de-aquiles para o governo Obama, se houver alguma percepção da sociedade, mesmo que infundada, de que o país está mais vulnerável a novos ataque
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