Marcelo Bortoloti
Julio Cesar Mello de Oliveira |
CACHOEIRA DO ENCANTADO, BAHIA: depredação de um patrimônio ainda pouco conhecido e estudado |
O Brasil é dono de um dos mais extensos e diversificados conjuntos de arte rupestre do mundo. Dele, conhece-se apenas uma pequena parte. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) registra a existência de 2 000 sítios arqueológicos com pinturas e inscrições pré-históricas, mas estima-se que esse número possa ser dez vezes maior. Esses registros gravados em rochas datam de até 40 000 anos atrás e constituem um patrimônio precioso e frágil por natureza, exposto que é à ação do tempo e das mudanças climáticas. No Brasil, a essa agressão inevitável soma-se uma praga vergonhosa. Aqui, o grande inimigo da conservação é o vandalismo. Pinturas milenares têm sido depredadas por pichações, fogueiras, gado – e até por cartazes de propaganda eleitoral. Em janeiro deste ano, no Parque Nacional do Catimbau, em Pernambuco, inscrições rupestres feitas há 6 000 anos foram destruídas depois de uma disputa entre guias que trabalhavam informalmente na região. Um deles sentiu-se lesado pelos colegas e jogou um balde de tinta vermelha sobre os desenhos. Até hoje ninguém foi indiciado.
Nos precários levantamentos do Iphan, a depredação atinge 3% do patrimônio. Levantamentos feitos por instituições estaduais dão uma ideia mais precisa do problema. A Universidade Estadual da Paraíba está fazendo o Mapa da Destruição no estado, cujo tesouro mais precioso é a Pedra do Ingá, um bloco de 24 metros de largura e 3 de altura coberto de grafismos misteriosos. Até agora, pesquisadores visitaram 44 sítios e encontraram marcas de vandalismo em 38 deles. Outra equipe, da Universidade Federal da Bahia, localizou dezoito casos de depredação em 120 sítios pesquisados no estado. País afora esse panorama desolador se repete, sem que se tome providência alguma para barrar a destruição.
O patrimônio rupestre conhecido até agora no Brasil não tem a mesma beleza dos desenhos de locais célebres como as grutas de Lascaux, na França, e de Altamira, na Espanha. Mas os cerca de 20 000 sítios formam uma das maiores concentrações do mundo de pinturas ainda não estudadas. Eles estão espalhados por todo o país e guardam desenhos de diferentes períodos. Alguns são inscrições geométricas, outros sugerem animais, rituais, cenas de luta. São uma ferramenta importante para os estudos sobre o processo de ocupação do continente americano, além de seu valor como registro artístico. Sua destruição é preocupante porque recai sobre material que ainda não foi sequer cadastrado e examinado. Desde 1961, o Iphan é responsável pela fiscalização desses sítios. Mas, até 2006, em seu quadro havia apenas seis arqueólogos. Atualmente há quarenta, um efetivo ainda ínfimo. "São milhares de sítios, muitas vezes em locais de difícil acesso, e pinturas isoladas, que ficam a centenas de quilômetros umas das outras. É impossível vigiar tudo", diz o diretor do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan, Dalmo Vieira Filho.
Pablo de Sousa / Cia da Luz |
PINTURA PRESERVADA Parque Nacional Serra da Capivara, Piauí: 10 000 visitas guiadas por ano e adeus ao vandalismo |
A solução, entretanto, não está fora de alcance. "Na Austrália, as pinturas também são espalhadas, só que há um guarda para vigiar cada sítio", diz a pesquisadora Niède Guidon, diretora do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Desde a década de 1970, a arqueóloga e sua equipe trabalham para fazer desse parque uma referência internacional. Quando decidiram abri-lo à visitação, em 1993, sofreram um revés imediato: em menos de um mês de visitas, começaram a aparecer nomes escritos sobre as pinturas. Desde então, a diretoria do parque só permite visitação com acompanhamento de um guia devidamente treinado, o que praticamente acabou com o vandalismo. Hoje, a Serra da Capivara recebe 10.000 visitantes por ano, tem 240 funcionários e um orçamento anual de 3 milhões de reais, a maior parte bancada por empresas que utilizam o incentivo da Lei Rouanet. Outros conjuntos expressivos de pinturas, como o do Parque Nacional do Catimbau, em Pernambuco, e o do Vale do Peruaçu, em Minas Gerais, continuam ameaçados pela falta de fiscalização. "Na França, há regiões que vivem do turismo arqueológico. Aqui, ninguém atenta para o número de empregos que pode ser criado em torno dessas áreas", diz Niède Guidon.