Em Paris, um desfile de sapatos excêntricos
Política

Em Paris, um desfile de sapatos excêntricos


Afinal, para onde vai a espécie?

Entre tule, renda e cápsulas arqueadas de madeira, os pés
subiram a alturas nunca dantes alcançadas nos desfiles de Paris

Jacques Brinon/AP
ASAS NOS PÉS
Arranjos vaporosos, marca de Philip Treacy,
nas sandálias rendadas
e emplumadas
de Valentino

São arroubos de passarela os sapatos absurdamente altos e absurdamente enfeitados sobre os quais as pobres modelos se equilibraram, com risco de vida, durante os desfiles de moda de Paris na semana passada. Exagerar nos desfiles é um artifício comum para agitar na propagação das marcas, mas o fato é que mesmo nas calçadas da vida comum os saltos estão cada vez mais altos, a ponto de comprometerem a mobilidade das mulheres que se entusiasmam com o estilo e a sensualidade que eles imprimem. Não que alguma mortal comum vá querer usar os "sapatos-tatus" criados pelo inglês Alexander McQueen, vanguardista consagrado – sem contradição – que fez uma impressionante mistura de estamparia, tecnologia e chutologia. Apesar do prosaico animal que dá nome a seu calçado-escultura, a coleção em si teve tema mais pretensioso: a Atlântida de Platão, como foi batizada, se inspira em Charles Darwin e seu A Origem das Espécies, cuja publicação completa 150 anos. "O fenômeno da bioluminescência dá o espírito da coleção. A ideia da sobrevivência e a forma como nos adaptamos para sobreviver são espelhadas no uso de lantejoulas fosforescentes e contas opalescentes", disse McQueen.

Não entenderam? Bem, é um pouco difícil mesmo. Mas o desfile impressionou pelas estampas sugerindo peixes, lagartos, cobras, besouros e outros bichos. E pelos sapatos feitos de madeira e recobertos com couro de cobra, pedrarias ou retalhos de metal, tudo feito a mão, na Itália. Guardadas as proporções, lembram na forma e no desconforto os sapatinhos que cobriam os pés minúsculos das chinesas de antigamente. No tempo (até o começo do século passado) em que ser mulher de elite exigia pés de boneca, a partir dos 3 anos as chinesinhas tinham os dedos quebrados e dobrados para a sola e o arco fraturado na mesma direção; tudo era envolto em ataduras apertadíssimas e, assim, em meio a dores excruciantes, os pés se atrofiavam em um terço do tamanho normal – o ideal eram inimagináveis 8 centímetros. Naturalmente, não podiam dar mais do que alguns minúsculos passos. No "sapato-tatu" de McQueen, os pés ficam em posição normal sobre um salto de 10,5 centímetros; incorporando-se o arcabouço externo e sua vertiginosa plataforma, as modelos andaram sobre uma estrutura de 24 centímetros de altura (quase uma VEJA de pé). Igualmente nas alturas, mas com muito mais delicadeza e frescor, as sandálias da coleção da Valentino exibiam arranjos de renda e tule preparados por um mestre improvável: Philip Treacy, o chapeleiro da moda na Inglaterra, em sua primeira – e muito criativa – incursão meridional. Nenhuma das criações mais arrojadas chegará às lojas. "Vamos ter uma coleção comercial inspirada nas cores e no tema. Mas o estilo será mais usável", informa a direção da grife McQueen. Caso contrário, as usuárias teriam de andar de liteira, como as chinesas de antigamente.

Fotos François Guillot/AFP

ANDANDO PARA TRÁS
Na vertiginosa plataforma arqueada usada pelas modelos de McQueen,
a memória dos torturantes sapatinhos que escondiam o pé deformado das chinesas




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