CONSTITUIÇÃO - 20 ANOS
A Constituição brasileira completa vinte anos com um legado ambíguo. Deu ao país estabilidade política e um arcabouço de direitos fundamentais – mas só as emendas impediram que ela se tornasse uma barreira intransponível para o crescimento econômico
Fábio Portela e Diego Escosteguy
Antonio Ribeiro |
O LÍDER Ulysses Guimarães, que esteve à frente da Assembléia Constituinte: "Será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros. O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo" |
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A Constituição que agora completa vinte anos refletiu o arranjo das forças políticas dominantes no Brasil quando de sua promulgação. Isso é típico delas. Constituições não materializam consensos perfeitos, mas os acordos possíveis, e, como a história, são escritas pelos vencedores. "A Constituinte era composta de pessoas de todas as origens. Eram banqueiros, operários, ex-cassados, ex-guerrilheiros. Todos queriam estar representados. Queriam, a seu modo, melhorar o Brasil", lembra Bernardo Cabral, relator-geral da Constituição. Alguns impasses eram insolúveis, como provam os diversos temas consagrados no texto, mas deixados à espera de uma lei complementar. Até hoje há dezenas de artigos que aguardam regulamentação. Vista por esse prisma, a Carta deixa claro quanto ainda existe de dissenso na vida pública brasileira. Dois méritos se agigantam quando se fala da Constituição de 88. Assim que foi promulgada, ela se tornou um símbolo. Era o sinal de que, depois de 21 anos de ditadura militar, o país havia cumprido a transição democrática. Como na primeira hora, a Carta preserva essa força simbólica. Acima de tudo, ela deu ao país instituições funcionais, verdadeiras máquinas de resolver conflitos sem rupturas políticas dramáticas e paralisantes – e, fazendo isso, proporcionou ao Brasil um caminho trilhável para o futuro. Não é pouca coisa.
A primeira Constituição nos moldes democráticos foi promulgada nos Estados Unidos, em 1787. Era uma pequena carta de princípios, com apenas sete artigos – mas que garantiu o desenvolvimento político de uma das democracias mais civilizadas que o gênio humano produziu. Ali, frisavam-se a supremacia da lei e a garantia dos direitos individuais, como a liberdade e a propriedade. Promulgada logo depois, a Constituição francesa promovia ideais semelhantes. Naquele tempo, o Brasil era ainda um apêndice de Portugal. A primeira Constituição do país só seria promulgada em 1824, com a proclamação da independência. Enquanto os americanos, os ingleses e os franceses aprendiam aos poucos a criar uma democracia, os brasileiros viviam sob a tutela de soberanos (dom Pedro I e dom Pedro II) com poderes quase absolutos. As luzes da democracia só chegaram ao país em 1891, um século após nascer na Europa e nos Estados Unidos. No século passado, o Brasil conheceu apenas lampejos democráticos, intercalados com as longas sombras dos períodos autoritários. Antes da Carta de 88, foram quatro constituições e duas ditaduras – a de Getúlio Vargas e a dos militares. A cada terremoto institucional, seguia-se uma nova Constituição.
Em 1988, a tentativa constitucional parecia mais propensa a durar, até porque ela refletia os anseios de uma sociedade cansada de sustos institucionais. Seu DNA era, portanto, robusto e saudável. Ainda assim, a nova certidão de nascimento contém falhas congênitas. Um dos maiores estudiosos da história dos governos, o inglês S.E. Finer definiu desta forma as constituições: "Elas são códigos de normas que pretendem regular a distribuição de poderes, funções e deveres entre as várias agências do governo, e definir as relações entre eles e o povo". Aí se encontra, por assim dizer, o mínimo denominador comum de um texto constitucional, preocupado em separar os poderes, organizar o funcionamento do estado e garantir os direitos individuais dos cidadãos. A Carta brasileira não se contentou com as nobres funções definidas por Finer e, seguindo uma tendência das constituições no século XX, encantou-se com o dirigismo econômico a ponto de ameaçar o funcionamento da atividade produtiva (leia a reportagem).
É notório o detalhismo da Carta de 88. Quando se examinam os que ficaram de fora do texto final, nota-se a disposição dos constituintes para o detalhe. Um artigo suprimido estabelecia, por exemplo, que "homens e mulheres teriam direitos iguais, excetuando-se os períodos de menstruação". Dois deles, que ficaram na redação definitiva, citam a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o que faz dela, talvez, como observou o constituinte Roberto Campos, o único "clube de profissionais" a eternizar-se em um texto constitucional. O detalhismo foi uma opção dos constituintes baseada no que acreditavam ser sua mais nobre missão, como explica o constitucionalista Oscar Vilhena, da Universidade de São Paulo: "Os constituintes queriam assegurar que os abusos da ditadura, como a censura e a perseguição política, não se repetissem. Naquele momento, a maneira mais apropriada de fazer isso parecia ser encravar minuciosamente todos os direitos na Constituição".
Paradoxalmente, a Carta de 88 perpetuou a concentração do poder no Executivo, dando continuidade a uma tradição que remonta ao império. O governo federal se manteve senhor absoluto da chave do cofre, de modo que o grosso dos tributos pagos pelo contribuinte continuou fazendo uma escala nos cofres da União para só então ser distribuído, ao alvitre do poder central, aos estados e municípios. Qual seria a alternativa? Àquela altura, a prática das democracias mais prósperas e estáveis mostrava que o racional seria produzir um orçamento e uma metodologia de repasses menos dependentes do grão-senhor, o Executivo. A Constituição de 88 deu ao Executivo a dádiva das medidas provisórias, um instrumento de regimes parlamentaristas para atos excepcionalíssimos, que, no Brasil, se tornou um meio de legislar sobre qualquer assunto. Diz o filósofo Roberto Romano, da Unicamp: "O modelo aprovado pelos constituintes resultou numa concentração ainda mais aguda de poderes no governo central, o que causa um desequilíbrio na harmonia do sistema democrático. Esse presidencialismo imperial levou ao enfraquecimento do Congresso e do sistema partidário".
Não faltaram momentos críticos para pôr à prova o modelo de resistência do DNA democrático da Carta de 88. O mais agudo deles foi o processo de impeachment do presidente Fernando Collor, todo ele conduzido dentro da legalidade pelo Congresso. Nas crises de corrupção que se seguiram, seja no governo Fernando Henrique Cardoso, seja recentemente, no escândalo do mensalão, no governo Lula, não se cogitou recorrer a ações que agredissem o arcabouço democrático. Tudo foi resolvido dentro dos preceitos legais. Nos últimos anos, o governo Lula lançou, em seguidas ocasiões, projetos para tentar controlar a imprensa ou censurar manifestações artísticas. Sempre em vão. A mais recente delas, um projeto que prevê punição ao jornalista que divulgar o conteúdo de escutas telefônicas feitas com autorização judicial, já recebeu tantas críticas que chegou morta ao Congresso Nacional. "O projeto é uma aberração", diz o deputado Miro Teixeira, do PDT do Rio, que participou da Constituinte. "Quando se trata de assuntos constitucionais, como esse projeto que viola a liberdade de imprensa, nunca podemos baixar a guarda. É dever de todos preservar o espírito da Constituição e da democracia."
Às vésperas da promulgação da Carta, José Sarney, ecoando o que lhe informara seu ministro do Planejamento, João Batista de Abreu, fez um sombrio diagnóstico sobre a nova Carta: "Ela tornará o Brasil ingovernável", disse Sarney. Ele se baseava na avaliação – acertada – de que os dispositivos econômicos da Constituição embutiam enormes desequilíbrios. As emendas salvaram-na do vaticínio de Sarney. O presidente da Assembléia Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, convocou uma cadeia de rádio e TV para reafirmar suas convicções: "Será a Constituição Cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros. O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo". Ulysses tinha certeza de ter produzido uma Constituição com "cheiro de amanhã, não de mofo". À sua maneira, tanto Sarney quanto Ulysses estavam certos. A Carta de 1988 refletiu a hegemonia da sociedade civil e dos princípios democráticos. Seria, portanto, uma redução ociosa classificá-la como boa ou ruim. Ela veio a ser funcional no terreno da política e na arquitetura social – e, graças às dezenas de emendas que recebeu nessas duas décadas, foi se tornando menos pesada na economia. É a cara do Brasil.
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