editorial |
O Estado de S. Paulo |
2/9/2008 |
A revelação de que presumíveis arapongas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o serviço secreto do Palácio do Planalto, grampearam os telefones de dois juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), o seu presidente, Gilmar Mendes, e o colega Marco Aurélio Mello - além de dois ministros de Estado e cinco senadores da República -, não cria propriamente uma crise institucional, no sentido ortodoxo da expressão. Embora não se saiba quem tomou a iniciativa de bisbilhotá-los, nem a quantos outros, nem, muito menos, para que, seria absurdo suspeitar que algum dos Três Poderes, por deliberação de seus dirigentes ou de quaisquer altas autoridades, patrocinou a ação criminosa contra integrantes dos demais. Tampouco há certeza, por enquanto, de que o esquema de escutas ilegais tenha sido autorizado, instigado ou tolerado pela cúpula da Abin - que, aliás, não tem poder de polícia, embora o seu diretor-geral, Paulo Lacerda, ex-diretor da Polícia Federal (PF), gostaria que tivesse, como já disse mais de uma vez. A crise, isso sim, é de governança - “descontrole do aparelho estatal”, na definição precisa do presidente do Supremo Tribunal Federal. No Executivo, a Secretaria de Segurança Institucional, a que a Abin é subordinada, parece não dispor de mecanismos efetivos para identificar eventuais desvios de conduta no órgão. Este, por definição e à semelhança dos congêneres de todo o mundo, exerce uma atividade que o coloca no fio da navalha, entre o cumprimento estrito das suas atribuições definidas em lei e a oportunidade da transgressão. Nesses organismos, “a necessidade de saber”, em defesa do Estado, pode servir de pretexto, com a maior facilidade, para práticas indefensáveis. É ainda de sua natureza constituir terreno fértil para abrigar emaranhados interesses políticos, internos ou em conexão com os que estabelecem áreas de influência em organismos aparentados, como, no caso brasileiro, a Polícia Federal - que recorreu ilicitamente a agentes da Abin na Operação Satiagraha. Segundo o noticiário, desconfia-se no governo e na própria Abin de que as escutas - das quais foram alvo, no Planalto, pelo menos a ministra do Gabinete Civil, Dilma Rousseff, o seu colega da Articulação Política, José Múcio Monteiro, e o chefe de gabinete do presidente, Gilberto Carvalho - envolveriam quadros egressos do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), um dos pilares do regime ditatorial. Esses R2, como são conhecidos no ramo, por serem militares da reserva, não só trouxeram consigo a velha cultura da espionagem, mas também formariam um corpo à parte dentro da Abin, resistente a reformas e a trocas de direção. “Não costumam dar satisfações a ninguém”, contou um funcionário, tornando público um fato decerto amplamente conhecido ali. Sejam eles ou não os autores da enormidade, a mera existência do quisto escancara a falta de comando no setor. E essa, vai sem dizer, ainda é a melhor hipótese, considerando as alternativas. Acrescente-se que a Abin dispõe de um núcleo de contra-inteligência, do qual seria de esperar que tivesse conhecimento e denunciasse à cúpula o grampo ecumênico - porque alcançou, no Senado, um representante do PMDB, Garibaldi Alves, o presidente da Casa, um do PT, Tião Viana, um do DEM, Demóstenes Torres (interlocutor do ministro Gilmar Mendes numa gravação vazada para a Veja), e três do PSDB, Artur Virgílio, Álvaro Dias e Tasso Jereissati. O Congresso, a propósito, tem um órgão de fiscalização externa da Abin, a Comissão Mista de Controle de Órgãos de Inteligência, criado quando aquela surgiu, em 1999. A sua mais recente reunião data de abril de 2005. É a sua contribuição para o descontrole apontado por Mendes - e que vem de longe. Diante do escândalo, o presidente do Supremo Tribunal Federal fez a coisa certa: cobrou providências diretamente do presidente Lula. Este também tomou a atitude correta, determinando de imediato a apuração do abuso e a demissão dos culpados. O problema é que isso é pouco. Chegou a hora de o Planalto ordenar uma revisão profunda dos procedimentos internos na Abin, com a adoção de supervisões cruzadas para inibir as práticas policialescas que se beneficiam da omissão - no mínimo - dos escalões responsáveis. E é evidente, por isso mesmo, que a atual diretoria da agência tem de sair. |