A partir do mesmo cenário do filme Tropa de Elite – a favela
carioca de Tavares Bastos –, a Record produziu uma série
que defende ponto de vista oposto
Marcelo Marthe
Fotos divulgação |
TERRA SEM LEI O traficante Nando (de camiseta branca): visão canhestra da questão do crime |
Ultimamente, a favela de Tavares Bastos, no Rio de Janeiro, tem sido agitada pela presença de equipes de gravação da Rede Record. Para a produção das cenas de perseguições e tiroteios de A Lei e o Crime, a primeira investida da emissora no filão das séries, casas e vielas são ocupadas por atores, técnicos e equipamentos. Em muitos locais, isso causaria comoção. Não na Tavares Bastos. "Quando passam por nós, os moradores nem olham para as câmeras", diz Hiran Silveira, responsável pela área de teledramaturgia da Record. Os 8 000 habitantes estão mesmo acostumados à rotina de gravações. Desde o filme Cidade de Deus (2002), retratar o cotidiano dos morros cariocas constitui um gênero à parte no cinema e na TV. E a Tavares Bastos converteu-se na mãe de todas as locações por oferecer tudo o que uma favela carioca tem – exceto a criminalidade. A ausência de bandidagem deve-se à vizinhança do Bope, o batalhão retratado em Tropa de Elite (2007) – filme de José Padilha que foi, em parte, rodado ali. O mesmo se aplica a Cidade dos Homens, tanto a série da Globo como o longa-metragem. Quanto à Record, virou freguesa do morro: gravou lá a novela Vidas Opostas (2007) e, agora, A Lei e o Crime. A temática vem lhe rendendo ibope, sobretudo no Rio. Na segunda passada, A Lei e o Crime obteve média de 24 pontos na cidade, empatando em primeiro lugar por minutos com atrações da Globo como o BBB 9. O pessoal da Tavares Bastos ganha seu quinhãozinho com isso. A associação dos moradores cobra coisa de 1 000 reais por dia de gravação no local. (Em tempo: não são só os produtores nacionais que procuram pela Tavares Bastos. Em 2007, a favela serviu de set para a superprodução O Incrível Hulk 2.)
Embora partam de um só ponto, essas produções chegam a lugares bem distintos. Tropa de Elite dá à favela ares expressionistas (veja o quadro). Cidade dos Homens revela o dia-a-dia de gente que vive sob o signo da violência. A Lei e o Crime busca ser um amálgama disso tudo (o esforço em emular Tropa de Elite fica patente no elenco, que conta com Caio Junqueira e André Ramiro, os aprendizes de policial do filme). Mas esses elementos são reduzidos a clichês, já que a trama é, no fundo, um baita melodrama – como, de resto, o autor Marcílio Moraes já fazia em Vidas Opostas. Narra-se o embate entre Nando (Ângelo Paes Leme), desempregado que se converte em chefe do tráfico depois de matar o sogro, e o cunhado Romero (Junqueira), policial corrupto ligado às milícias e obcecado por vingar a morte do pai. A terceira protagonista é Catarina (Fran-cisca Queiroz), socialite que vê o pai também ser assassinado por Nando e troca a vida na flauta pelo trabalho como delegada. A moça é um poço de ingenuidade bem-intencionada num distrito policial que é um ninho de cobras.
Por um ranço esquerdoide, diretores e roteiristas brasileiros sempre tenderam a demonizar a autoridade policial e a romantizar os bandidos. Cidade de Deus rompeu com essa visão demagógica ao mostrar que não é o meio que faz as pessoas, e sim seu próprio arbítrio. E Tropa de Elite colocou as coisas de vez no lugar, ao tratar bandidos como bandidos. Em A Lei e o Crime, Marcílio Moraes faz do traficante Nando um sujeito simpático. Ele matou o sogro? Bem, o velho é que o humilhou demais. "A vida o levou ao crime. Em outras circunstâncias, Nando seria um general brilhante", diz Moraes. Ele tem, ainda, uma ligação terna com a mulher e a filha e é generoso com os moradores da favela. E o principal: os policiais que o perseguem são monstros ainda mais hediondos. Além do cunhado miliciano, há o investigador seboso interpretado pelo veterano Kito Junqueira que, na semana passada, prendeu, torturou e violentou um rapaz inocente. Nesse aspecto, a série é um retrocesso.
O morro de cada um As diferentes visões de uma mesma favela carioca no cinema e na TV A FAVELA EXPRESSIONISTA A FAVELA NATURALISTA A FAVELA MELODRAMÁTICA |