Commodities e autopunição
ANDRÉ MELONI NASSAR
O Estado de S.Paulo - 20/07/11
O Brasil vive um momento de autopunição na economia. Ao setor de
commodities, o mais competitivo e em franca expansão internacional,
foi atribuída a culpa pelas crescentes importações de bens de consumo.
O Brasil estaria dando um passo para trás porque importa produtos de
alta tecnologia, gerando empregos "de qualidade" nos outros países, e
exporta matérias-primas, supostamente desprovidas dessas
características. Nessa visão, quanto mais o Brasil expande sua
produção de commodities agropecuárias, florestais e minerais,
aproveitando o bom momento de preços mundiais, mais os setores
industriais produtores de bens de consumo deixam de crescer.
Essa é uma visão tão atraente que pessoas esclarecidas chegaram a
afagá-la. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista ao
Estado no início de julho, lamentou en passant a resiliência do Brasil
à ideia de voltar a ser uma economia produtora de matérias-primas,
sugerindo que existem setores detentores de mais tecnologia e
inovação, que não são os de commodities.
O experiente embaixador Sergio Amaral, no XXIII Fórum Nacional,
sensível às dificuldades da indústria manufatureira, perguntou se o
País poderia aceitar "o declínio ou mesmo a extinção de setores
industriais relevantes para o emprego e o desenvolvimento". Na
sequência mencionou a Austrália, grande produtora de commodities, que
estaria tomando medidas para "corrigir distorções" causadas pelas
crescentes exportações desses produtos. Mencionou, também, que não
faria sentido reduzir as exportações de matérias-primas - ainda bem!
-, apesar de insistir na ideia de que é preciso agregar valor às
exportações brasileiras.
Os comentários de Amaral tocam em dois pontos mencionados no primeiro
parágrafo. O primeiro está baseado numa questão complexa que, quando
simplificada, nos leva à mesma conclusão do embaixador: a de que
crescentes superávits comerciais nas exportações de matérias-primas
causam distorções na economia, as quais vêm em prejuízo dos setores de
bens de consumo. O segundo comentário, embora posto na perspectiva de
comércio internacional, bebe da mesma fonte do ex-presidente FHC: a de
que os setores produtores de commodities não agregam valor.
O Brasil vive um momento de expansão da produção e exportação
commodities - produtos do agro, minerais e combustíveis. Esses
setores, que juntos totalizaram 71% das exportações brasileiras em
2010, vêm ganhando relevância na pauta exportadora. Do lado das
importações, os bens de consumo e, mais timidamente, os bens de
capital são os que estão crescendo. As matérias-primas, no entanto,
ainda são 55% do total importado pelo Brasil. Ou seja, embora em
crescimento, o volume de importação de bens de consumo e de bens de
capitais ainda é menor que o de commodities.
Como os preços das commodities estão em alta - lembrando que eles são
mais elevados do lado exportador que do importador -, o que não ocorre
com os preços dos bens de consumo e de capital, os termos de troca
sobem, favorecendo a atração de investimentos para os setores de
commodities, estimulando ainda mais o crescimento da produção e da
exportação. Esse investimento hoje será produção, emprego e renda
amanhã.
No Brasil atual, o fenômeno do aumento dos termos de troca não é uma
distorção. Não só porque os preços das commodities mais cedo ou mais
tarde caem (pois esse fenômeno é resultado do movimento cíclico de
seus preços), mas também porque a demanda segue em crescimento,
estimulando e financiando a expansão de todos os setores da economia.
Vale lembrar que importações de bens de capital significam melhoria
tecnológica e aumento da capacidade produtiva. Além disso, se a razão
de fundo para imaginar que o crescimento das exportações de
commodities e das importações de bens de consumo seja o câmbio, há
evidências macroeconômicas mais relevantes para justificar nossa taxa
de câmbio valorizada que não são explicadas pela conjuntura de curto
prazo.
Quando falamos em commodities, é quase inevitável a visão de que esses
produtos têm pouco valor agregado, baixo conteúdo tecnológico, pouca
inovação e não geram empregos de qualidade. O Brasil precisa superar
essa noção, que enxerga os setores intensivos em recursos naturais
como exploradores da natureza e competitivos apenas porque o recurso
natural é barato e abundante. Talvez ela fizesse algum sentido nos
primórdios da industrialização brasileira. Hoje é ultrapassada e
enviesada.
Em primeiro lugar, porque nada garante que a indústria de bens de
consumo agregue mais valor do que os setores de commodities. Sem
dúvida, algumas delas têm longas cadeias produtivas, conectando vários
setores e serviços. Mas isso não quer dizer que sejam sinônimo de
inovação e incorporação de tecnologia nacional. Setores produtores de
commodities, como o agro, também têm longas cadeias produtivas,
caracterizadas por elevado grau de inovação na indústria de insumos e
na aplicação da tecnologia dentro da porteira. Além disso, não se pode
deixar de lado o crescimento dos setores de serviços, o
desenvolvimento no interior do Brasil e na infraestrutura logística,
diretamente ligados às commodities. Isso também gera emprego de
qualidade.
Por fim, não custa lembrar, como defendido por Marcos Jank e Maurice
Costin em artigo publicado no Estado em 2004, que a agricultura é
indústria. Quando as commodities do agro vão bem, vários setores da
indústria de bens de capital e de bens de consumo também vão bem. É
claro que o País precisa desenvolver sua indústria, buscar a inovação
e o avanço tecnológico. Mas não é batizando as commodities de culpadas
que se vão desenvolver todos os outros setores. Assim, reafirmo que o
crescimento e a inserção internacional do agro são condição para o
crescimento sustentado, não uma condenação.