Famílias inteiras pregadas num sono maldormido espremem-se em veículos espalhados num imenso estacionamento. Plena madrugada. Muitas vindas de longe: duas, três horas de viagem. São aproximadamente 3 mil pessoas, de todas as idades.
No descampado em frente, um hospital de campanha vai pouco a pouco se erguendo. Salas de exame e cirurgia separadas por lençóis de pano branco. Trabalho conduzido por um voluntário, Stan Brock, que comanda o Remote Area Medical Volunteer Corps, ONG que desde 1985 leva assistência médica gratuita para lugares e populações desassistidas, estejam onde estiverem. Ao nascer do sol, filas de pacientes se formam à entrada do acampamento improvisado.
Ao longo do dia, nas barracas, centenas de voluntários (médicos, dentistas, oftalmologistas e enfermeiras) desdobram-se em consultas, exames e cirurgias que vão de simples extrações de dentes a complexas retiradas de tumores. Para muitos pacientes é o primeiro atendimento médico em muitos anos. Uma mulher de 60 anos, que sofre de diabetes, diz ter feito a última mamografia 18 anos atrás. Levará 12 horas para ser atendida. Alguns não resistem em pé a tanto tempo de espera. Desmaios não são raros. A torrente humana entra e sai do acampamento médico por três dias seguidos.
Cena do Terceiro Mundo? Coisa nenhuma: cena americana, vista pelo olhar atento e sensível da jornalista Mary Otto, em reportagem publicada na edição de 9/11 do The Washington Post Magazine. Ela se repete há oito anos numa pequena localidade do sudoeste da Virgínia chamada Wise County. Segundo o U. S. Census Bureau, a proporção de pobres em Wise County chega a quase 20% da população, sete pontos porcentuais a mais do que no conjunto do país. A renda per capita é de cerca da metade da renda per capita americana. No entanto, a cena que ali se vê anualmente retrata - em tons mais dramáticos - uma realidade nacional.
Os pacientes atendidos no acampamento do Remote Area Medical Volunteer Corps - em sua maioria, pobres brancos americanos, trabalhadores e ex-trabalhadores de decadentes minas de carvão que um dia empregaram muita mão-de-obra naquela região - fazem parte do contingente de pessoas que não têm seguro-saúde nos EUA.
Imenso contingente, estimado em 47 milhões de pessoas, às quais se somam outros 25 milhões, considerados "insuficientemente segurados", gente cujo seguro mal dá para cobrir os tratamentos mais simples. Segundo um relatório do U. S. Census Bureau, de 2007, o número de sem-seguro-saúde nos EUA aumentou em 12 milhões de pessoas desde 1990 e o de insuficientemente segurados ampliou-se em nada menos que 60% desde 2003. O quadro deve piorar, com o crescimento do desemprego, que já está em 6,5%, a maior taxa desde 1992, e pode atingir, segundo analistas, mais de 9% ao longo de 2009, na esteira da crise financeira que agora faz vítimas em número crescente na economia real. Sem emprego, sem seguro-saúde.
Em comparações internacionais, entre países desenvolvidos, os EUA aparecem em péssima posição quando o assunto é saúde. Segundo dados da OCDE, os custos são grandes e crescentes: passaram de 8% para 15% do PIB entre 1980 e 2004 (quase o dobro da média dos demais países filiados à organização). E os problemas de acesso são tremendos: em pesquisa recente (The Commonwealth Fund 2008 International Health Policy Survey of Sicker Adults), 54% dos americanos disseram ter deixado de fazer exames, ir ao médico ou fazer tratamento recomendado por falta de recursos, nos dois anos anteriores. Entre cidadãos do Reino Unido e da Holanda, os porcentuais apurados foram de respectivamente 13% e 7%. Na França, 23%.
Não por acaso, quando perguntados, na mesma pesquisa, sobre a necessidade de reformas pequenas, grandes ou completas de seus sistemas de saúde, os americanos se destacam pela insatisfação: quase 80% dos entrevistados se disseram a favor de mudar tudo ou quase tudo e apenas 20% a favor de pequenos ajustes. No Reino Unido, na Holanda e na França, o porcentual dos que se contentariam com pequenos ajustes é duas vezes maior.
A reforma do sistema de saúde foi um tema central da campanha para a Casa Branca. Uma bandeira democrata e uma promessa de Obama, presidente eleito. Seu programa prevê reduzir a menos da metade o número dos sem-seguro-saúde nos EUA nos próximos dez anos. Custo estimado: US$ 1,6 trilhão, entre 2009 e 2018, começando com uma despesa de US$ 90 bilhões já no primeiro ano da reforma, segundo o Tax Policy Center.
Haverá recursos para tanto? Verdade que US$ 1,6 trilhão no acumulado de dez anos não parece muito para quem nos últimos meses se acostumou a ouvir cifras na casa das centenas de bilhões de dólares, mobilizadas quase de imediato para salvar o sistema financeiro e a economia do colapso. O Congresso pôs US$ 700 bilhões à disposição do Tesouro para comprar ativos podres ou injetar capital nas instituições financeiras. A iniciativa não foi suficiente para estabilizar os mercados e, com a economia real rolando ladeira abaixo, Obama anunciou, para o início de seu mandato, a adoção de um pacote de estímulos fiscais que poderia chegar a outros US$ 700 bilhões. Será suficiente? Ninguém sabe. Nessa toada já se projeta um déficit fiscal de 7% do PIB, ou mais, para os próximos dois anos, o que começa a levantar receios sobre uma súbita perda de confiança no dólar.
São muitas as incertezas, mas uma coisa é certa: a reforma do sistema de saúde é, depois da recuperação da economia, a mais decisiva batalha de Obama no front doméstico. Como conciliar a urgente necessidade de evitar a depressão com as possibilidades de cumprir suas principais promessas de campanha é o seu maior desafio. Se a crise sorver recursos públicos além da conta, será difícil explicar ao pessoal de Wise County por que Wall Street, mais uma vez, levou a melhor.
Sérgio Fausto é coordenador de Estudos e Debates do Instituto Fernando Henrique Cardoso E-mail: [email protected]
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