Nem convém falar assim, em público, mas há momentos em que o
pensamento rompe nossas barreiras e cogita da eficácia do despotismo
esclarecido. A gente observa a desgraça que políticos democraticamente
eleitos espalham pelo mundo afora e imagina: e se tivéssemos um líder
com capacidade intelectual e visão de futuro absolutamente
extraordinárias, uma pessoa do bem, com senso de justiça social? Esse
líder, com poderes absolutos - quer dizer, sem os constrangimentos de
lidar com políticos interesseiros e populistas - não poderia fazer um
imenso bem ao país?
Está falando da China - é, pelo menos, o que se diz lá mesmo. O
primeiro déspota teria sido Deng Xiao Ping, que no final dos anos 70
venceu a camarilha dos herdeiros de Mao, e lançou as reformas
econômicas pró-capitalismo que trouxeram a China à posição de hoje.
Além disso, Deng teria solucionado muito bem um problema difícil para
todos os déspotas, esclarecidos ou não, que é a sucessão.
Deng não deixou um sucessor, mas um grupo, um sistema, instalado no
Partido Comunista. Assim, a China emplacou três décadas crescendo a
taxas anuais de 10% e, mais importante, retirou da pobreza algo como
800 milhões de pessoas - os chineses que hoje vivem na parte urbana e
desenvolvida.
E, para deixar o leitor ainda mais perturbado com este pensamento tão
incorreto quanto tentador, o sistema chinês oferece neste momento mais
duas demonstrações de sua eficiência política e visão de futuro.
Primeira, a sucessão: ao longo deste ano, de maneira organizada e
pré-anunciada, serão substituídos o presidente do país e chefe do
partido, Hu Jintao, e o primeiro-ministro, Wen Jiabao.
A outra demonstração é um surpreendente estudo estratégico que o
governo chinês encomendou junto ao Banco Mundial - e que foi preparado
por economistas do banco e do Centro de Pesquisa de Desenvolvimento do
Conselho de Estado da China. O título: "China 2030, construindo uma
sociedade de alta renda, moderna, harmoniosa e criativa."
É o que parece, uma tentativa de antecipar o futuro, um documento de
468 páginas, "pensando" como a China pode saltar de um país de renda
média para alta, ou seja, de emergente para rico. Parte da constatação
de que o modelo dos últimos 30 anos - trabalho duro, salário baixo,
muita economia, pouco consumo, tudo exportado - não vale mais.
Trata-se, pois, de uma troca organizada de sistema.
Reparem: o Banco Mundial é parte do sistema financeiro global, junto
com o FMI e Banco de Compensações Internacionais, o banco central dos
bancos centrais. Logo, trata-se do coração do capitalismo global. E,
como seria de se esperar, o estudo sugere menos estado e mais mercado,
menos governo agindo diretamente na economia e na sociedade e mais
espaço para a ação dos indivíduos.
Prestaram atenção? Esse é o estudo preparado com a autorização e o
apoio do Conselho de Estado da ditadura do PC chinês. Claro, o
relatório não propõe a derrubada da ditadura e a introdução da
democracia, mas sugere que não haverá como escapar de uma sociedade
mais aberta, em consequência mesmo do enriquecimento e da formação de
cidadãos mais expostos ao mundo.
Tudo considerado, como ficamos? A atual versão chinesa do despotismo
esclarecido - regime de monarcas europeus do século 18 - pode ser
repetida em outros países?
A resposta mais comum é "não". De maneira geral, entende-se que o caso
chinês é único sob diversos aspectos. Por exemplo, como sair do
desastre sangrento do período maoista para uma democracia liberal
clássica, em um país de mais de um bilhão de pessoas, em situações tão
diferentes? E como promover a mudança dramática de uma economia rural
muito pobre para outra industrializada sem uma marcha forçada pelo
regime?
Finalmente, a China seria única pela sorte. Acabou que o poder ficou
nas mãos de um Deng Xiao Ping. E se a luta interna tivesse terminado
com a vitória da viúva de Mao, Jiang Qing? Isso poderia perfeitamente
ter acontecido e a China hoje seria uma imensa Coreia do Norte.
O que nos leva ao outro lado da história. Não se podem colocar as
fichas em um regime que depende tanto de acasos históricos. Se começa
com um déspota estúpido e mau caráter, fica quase impossível
derrubá-lo. Observem como é difícil afastar os ditadores dos países
árabes. No Brasil, já tivemos ditaduras variadas, mas não
esclarecidas.
Além disso, é preciso colocar na balança os custos da expansão
chinesa, a começar pelas pessoas assassinadas na Praça Tiananmen, que
justamente reivindicavam mais abertura e benefícios econômicos. É
difícil, entretanto, fazer esse balanço: a ditadura esconde seu
passivo.
Em resumo: a China já está aí, se prepara para o futuro e ainda nos
perturba. Na economia e na política.