A periodização da história, especialmente quando escalonada em
séculos, é um artifício para se delimitar, de algum modo, a passagem
do tempo. Assim, o historiador Eric Hobsbawn chamou de curto o século
20 porque, a rigor, o corte inicial, segundo ele, inicia-se em 1914,
com a eclosão da 1ª Guerra Mundial, e o corte final ocorre em 1991,
com o colapso da União Soviética.
Tomando como ponto de partida essa cronologia e com a vantagem da
visão retrospectiva, podemos afirmar, em poucas palavras, que o século
20 foi marcado pela tragédia. Morticínio provocado por duas grandes
guerras, emergência dos totalitarismos na Rússia, na Itália e na
Alemanha, massacre dos judeus, ciganos, "deficientes" físicos ou
mentais pela horda nazista.
É possível matizar essa visão profundamente negativa lembrando que,
nos dias de hoje, as guerras mundiais são muito improváveis, os
regimes totalitários foram derrotados e, mais ainda, que após dois
conflitos sangrentos no último século, para não falar da guerra
franco-prussiana de 1870–1871, Alemanha e França tornaram-se aliados,
com um papel central na União Europeia.
Podemos interpretar o século 20 com ênfases diversas, ou mesmo
contrastantes, mas ninguém contesta os fatos que sucederam ao longo de
seu decorrer, se jogarmos na lata do lixo "os assassinos da memória",
negadores do Holocausto, como os chamou o historiador francês Pierre
Vidal- Nacquet.
Viremos a página para encarar o adolescente século 21, com pouco mais
de 11 anos de existência. Quase 90 anos cobertos de neblina surgem
diante de nós, ou melhor, das novas gerações, pois muito poucos dos
vivos de hoje permanecerão vivos na próxima virada de século.
Nos dias que correm, Clio já nos preparou uma surpresa. Quem poderia
prever as revoltas dos povos árabes, estendendo-se dos países do Golfo
Pérsico à Argélia, no Norte da África? Certamente essas revoltas terão
desfecho diverso e algumas delas poderão fracassar, como é o caso da
Líbia. Mas elas vêm demonstrando a inconsistência da afirmação, tantas
vezes repetida, de que a cultura dos povos árabes é incompatível com a
democracia.
Certamente o ritmo da evolução democrática no mundo ocidental, apesar
das ameaças crescentes ao direito das minorias, com fortes traços de
xenofobia, não se compara com o quadro existente no Oriente Médio. Mas
o fato é que pelo menos uma parcela dos manifestantes dos dias de
hoje, além de buscar emprego e uma vida decente, luta pelo direito à
livre expressão – um direito que passa pela derrubada de ditadores e
tiranos.
Na esfera da economia, o século 21 aparenta ser o século da China,
acompanhado de uma queda relativa dos Estados Unidos e mais acentuada
dos países da União Europeia. Entretanto, os relatórios recentes dos
grandes bancos divergem em seus prognósticos. Num extremo, o Citigroup
prevê que já em 2020 o PIB chinês superará o dos Estados Unidos; no
outro, o HSBC calcula que a ultrapassagem ocorrerá por volta de 2045.
O PIB, por si só, não mede a qualidade de vida da população, pois
pouco ou nada diz sobre a renda per capita e o PPP (poder paritário de
compra) dos diferentes países, e aí a China tem um longo e complicado
caminho a percorrer.
Entretanto, até por volta de 1980 alguns economistas e sociólogos
falavam do Japão como a futura potência hegemônica, em contraste com o
declínio americano. Hoje, apesar de ainda ser a terceira economia do
mundo, o Japão vive uma longa recessão que a recente catástrofe
sísmica, infelizmente, deverá agravar.
De uma forma ou de outra, o século 21 seria então, a partir de certo
momento, o século da hegemonia chinesa? Talvez. Convém lembrar que o
ranking do Citigroup coloca a Índia à frente da China em 2050,
enquanto ela fica em terceiro lugar em dois outros rankings (Goldman
Sachs e HSBC). A melhor projeção para o Brasil – diga-se de passagem –
colocaria nosso país em terceiro lugar, e a pior, em sétimo, a mesma
posição de hoje, na hipótese mais pessimista. O ascenso da China e da
Índia indica que o maior polo da economia mundial, em meados do
século, estará concentrado na Ásia.
Diante de tudo isso, não se trata de dizer que vivemos sob o império
do acaso e de um futuro aleatório. As transformações das estruturas
socioeconômicas, assim como as culturais, de longa duração, ganharam
velocidade, mas permanecem de pé, condicionando e limitando o arco das
possibilidades. Convém lembrar, entretanto, que certos conceitos tidos
como centrais na história das sociedades contemporâneas perderam muito
de seu poder explicativo, como é o caso da luta de classes – chave da
história em tempos relativamente recentes.
Estamos hoje longe da crença religiosa nas leis da história e abertos
a admitir o imprevisível. Aos nossos olhos, o processo histórico
continua a ser um processo, mas menos codificado, mais cheio de
surpresas, o que o torna mais atraente.
Boris Fausto é historiador, professor aposentado do Departamento de
Ciência Política da USP e autor de A revolução de 30 – historiografia
e história (Companhia das Letras)