Eugênio Bucci - O fundamentalismo do Estado cubano
Política

Eugênio Bucci - O fundamentalismo do Estado cubano


21 de abril de 2011 | 0h 00

O Estado de S.Paulo
Ao final do sexto congresso do Partido Comunista Cubano (PCC),
anteontem, revelou-se a verdadeira face da renovação prometida pela
ditadura que há 52 anos manda na ilha. No lugar do velho comandante
Fidel Castro, que agora saiu formalmente do poder, entra o irmão dele,
Raúl Castro. Raúl é um pouquinho mais novo que Fidel: tem 79 anos de
idade. Como segundo homem na hierarquia partidária foi nomeado José
Ramón Machado, que é um pouquinho mais idoso que Raúl: tem 80. Nada
contra a maturidade, que traz ensinamentos e até sabedoria. Em Cuba,
no entanto, o Estado geriátrico é o reflexo do envelhecimento não das
pessoas, mas do regime. Os sonhos de juventude viraram pesadelo nesse
fim de noite. A renovação anunciada no congresso dos comunistas
cubanos é a antessala da morte. Física e política.

Na década de 1950, Raúl e Ramón davam tiros em Sierra Maestra. Agora,
são linha dura e não lançam sinais seguros de liberdades democráticas
em Havana. No plano econômico, o capital deve conseguir seu visto de
entrada nos domínios dos Castros, mas por ora vai mandar para lá
apenas o seu lado selvagem: desemprego, especulação, insegurança. O
autoritarismo cubano avança na direção de juntar os dois mundos, o
socialista e o capitalista, pelo que há de pior em cada um deles, e
faz isso graças ao apoio dos que veem na decrepitude do PCC o farol e
a tábua de salvação dos ideais de fraternidade socialista.

Cuba só se converteu na tirania que é hoje - caquética, mas de pé -
porque soube transformar a militância que a sustenta, dentro e fora da
ilha, numa seita religiosa. Há décadas, amaldiçoou o pensamento
crítico, baniu toda divergência, fez da imaginação um vício proscrito
e, no vazio deixado pelo que havia de inquieto na revolução, instalou
o dogma e a obediência cega. Criticar Fidel virou pecado mortal. O
silêncio obsequioso diante do sofrimento e da humilhação que ele impôs
e impõe ao povo cubano virou sacerdócio. Ser socialista virou sinônimo
de crer na infalibilidade do ditador. Foi assim que a ditadura
confinou sua gente, com a cumplicidade de muitos que se calaram, por
medo de serem vistos como agentes do imperialismo. O imperialismo é a
encarnação do demônio.

Que atitude pode ser mais religiosa, mais fundamentalista do que essa?

Não foi por acaso que o Estado cubano assumiu os contornos de um
Estado fundamentalista. Na Constituição da República de Cuba, o poder
não emana do povo - apenas parte do poder emana do povo. A parte mais
importante vem do alto, vem do partido, que, atenção, não tem as
portas abertas para qualquer cidadão: ela admite como integrantes
apenas aqueles que são escolhidos não pelo povo, mas pelos que já são
integrantes do próprio partido. Assim, em Cuba, quem dirige o Estado e
a sociedade (ou os modos de viver) é o partido - não é o cidadão ou um
representante direto do cidadão.

O artigo 5.º da Constituição cubana não deixa dúvidas quanto a isso:
"O Partido Comunista de Cuba, martiano (de José Martí)e
marxista-leninista, vanguarda organizada da nação cubana, é a força
dirigente superior da sociedade e do Estado, que organiza e orienta os
esforços comuns na direção dos altos fins da construção do socialismo
e do progresso na direção da sociedade comunista".

Tanto é assim que as decisões sobre os destinos do povo cubano não
emergem de uma instância republicana, de Estado ou de governo, mas do
partido, uma elite fechada, que é "a força dirigente superior". Em
Cuba, o partido é a fonte da verdade, mais ou menos como - a
comparação é inevitável - ocorre com na República Islâmica do Irã.
Também no Irã a verdade superior reside numa instância que paira acima
dos órgãos de Estado e de governo, integrada por sábios religiosos (a
função que em Cuba cabe ao partido no Irã é exercida pelos sábios da
fé). Esse princípio é explícito em diversos artigos da Constituição
iraniana. O artigo 13 por exemplo, afirma que o presidente é a
autoridade máxima no país, ficando abaixo, apenas, da autoridade
religiosa. Ou seja: como em Cuba, também no Irã não é todo o poder que
emana do povo. Apenas uma parte do poder emana do povo, e essa parte é
hierarquicamente inferior à outra, aquela que não emana do povo.

As semelhanças de estrutura entre as duas Constituições não são poucas
nem pequenas. Registremos apenas outras duas: o princípio do
expansionismo internacional da doutrina que professam e a
identificação clara do inimigo, cuja figura maligna serve para
justificar a supressão das liberdades internas. Na Constituição
cubana, o artigo 12 consagra "os princípios internacionalistas e
anti-imperialistas", pois, como se lê no preâmbulo, "só o socialismo e
o comunismo" conduzem "à inteira dignidade do ser humano". Na
Constituição do Irã, fala-se na "completa eliminação do imperialismo"
e em "expansão e fortalecimento da fraternidade islâmica" e na
"cooperação pública entre todos os povos", uma vez que, como se lê no
artigo 11, "todos os muçulmanos formam uma só nação".

Para os tiranos, ninguém é mais valioso que o inimigo e nenhum
sentimento é mais cultuado que o medo do inimigo. O povo deixa-se
oprimir quando tem medo do tirano e do inimigo do tirano. Por isso, a
ditadura em Cuba sempre adotou o discurso de país em guerra. Precisa
da retórica de guerra para prender opositores. Sem inimigo, o ditador
perde o emprego.

É verdade que, no encerramento do congresso do PCC, Raúl declarou que
o principal inimigo do partido, agora, "são nossas próprias
deficiências". Como todo líder religioso, ele propõe um exame de
consciência. Isso não significa, porém, que o imperialismo tenha
perdido o posto de vilão oficial. Significa apenas que a ditadura se
deu conta de que envelheceu, mas não desistiu. Significa que mais
perseguições internas, devidamente inquisitoriais, estão a caminho.

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM




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