Bush anuncia pacote de 17,4 bilhões para salvar
a indústria automobilística, cuja falência enterraria
um símbolo que moldou a identidade americana para
os próprios americanos e para o mundo
André Petry, de Nova York
Fabrizio Costantini/The New York Times |
EM BUSCA DE MILAGRE Fiéis de uma igreja em Detroit, com carros utilitários no altar, pedem proteção divina à indústria |
Na história do automóvel, a Europa teve um papel relevante. Com suas avenidas generosas, Paris foi a primeira cidade do mundo a ter um punhado considerável de carros circulando pelas ruas – e a piada, anos depois, diria que, em vez de Hitler, quem destruiu Paris foi a Renault. Coube a dois cidadãos da Alemanha, Gottlieb Daimler e Karl Benz, dar os passos decisivos para a combustão interna e o veículo com autopropulsão. Na Inglaterra, os primeiros automóveis eram malvistos pela aristocracia romântica e repudiados pelo campesinato reacionário, que reclamava da arrogância dos motoristas, das galinhas mortas e do latido estridente dos cães. A Itália de Benito Mussolini foi o primeiro país a construir auto-estradas, apresentadas como símbolo da modernidade fascista. Mas foi do outro lado do Atlântico que o automóvel encontrou a sua pátria mundial. Nos Estados Unidos, surgiram os drive-ins e os drive-thrus, a faixa de pedestre e o motel, o Cadillac e o Mustang. Em 1929, já havia um carro para cada cinco americanos, virtualmente um por família. Em nenhum outro país existe uma Detroit, cidade que se tornou sede de três ícones mundiais da indústria automobilística: Ford, GM e Chrysler.
Por isso, não há país em que a ameaça de falência da indústria automobilística, que ronda as três gigantes de Detroit, provoque impacto tão amplo – econômico, social, cultural, com uma fisgada no orgulho americano. Há poucos dias, uma igreja pentecostal de Detroit colocou sobre o altar três carrões utilitários, um de cada marca, para pedir proteção às fabricantes ao som da canção Em Busca de um Milagre. Com mais de oitenta anos de idade – a mais velha é a Ford, fundada em 1903; a mais nova é a Chrysler, de 1925 –, as três fabricantes enfrentam a maior crise da história. Em setembro, pegaram um socorro de 7,5 bilhões de dólares. Seis semanas depois, pediram mais. O Congresso negou. Na sexta-feira passada, depois que as três disseram que vão prolongar as tradicionais duas semanas de férias coletivas no fim do ano, o presidente George W. Bush anunciou um dramático pacote de 17,4 bilhões de dólares. São 13,4 bilhões em empréstimos de emergência, e mais 4 bilhões estarão à disposição em fevereiro. Com isso, espera-se que as fábricas consigam evitar o colapso financeiro até pelo menos o fim do primeiro trimestre do ano que vem. É uma notícia alentadora para a indústria automobilística, mas o Congresso – de novo ele, e agora em recesso – terá de interromper as férias e aprovar a ajuda concedida pelo presidente. O clima é de salve-se quem puder.
A eventual falência das três, que vem sendo descrita como "devastadora" e "catastrófica", ceifaria quase 3 milhões de empregos no ano que vem, segundo estudo do Center for Automotive Research, entidade localizada em Ann Harbor, no estado de Michigan, perto de Detroit. O governo deixaria de recolher mais de 156 bilhões de dólares em impostos nos três anos subseqüentes. Mas o impacto não seria apenas econômico. Quando Henry Ford, em 1908, colocou no mercado seu Modelo T, o primeiro carro cujo preço era acessível às massas, o automóvel começou a virar um pedaço da América, como o beisebol, a torta de maçã, o Mickey Mouse e as pinturas de Norman Rockwell. "Os americanos organizaram sua vida em torno do carro", disse a VEJA Brian Ladd, historiador pela Universidade Yale e autor de Autophobia, livro que descreve o amor e o ódio despertados pelos automóveis na história. "Há muito tempo os carros deixaram de ser só meio de transporte ou símbolo de status. Neles, os americanos vivem, relaxam, brigam, comem, se divertem e, claro, se envolvem nos mais diversos rituais de acasalamento."
Fotos Bettmann/Corbis/Latistock |
COMO TORTA DE MAÇÃ Cadillac de 1959, com sua traseira de foguete, e Henry Ford, num quadriciclo, na década de 1890: linhas que são a cara da América |
A força do automóvel é tanta que os revendedores são mais do que um ponto de comércio nas pequenas cidades. Eles financiam o time local de beisebol, patrocinam o torneio de golfe, levantam dinheiro para caridade. "Em muitos lugares, somos o alicerce da comunidade", diz Annette Sykora, presidente da Associação Nacional dos Revendedores, fundada em 1917, que representa 20.000 concessionárias no país. Neste ano, 700 já fecharam as portas. Em Danbury, no estado de Connecticut, Todd Ingersoll, ex-integrante da Marinha, instalou no estacionamento de sua revendedora o mastro mais alto da cidade, com 45 metros, onde tremula a bandeira americana, e presta serviços mecânicos de graça a parentes de militares que servem no Iraque e no Afeganistão. Os brasileiros também estão na ciranda da filantropia. Kátia Paviote de Carvalho Ferreira, mineira de Galiléia, 40 anos, desde os 19 nos EUA, tem uma revendedora de usados em Danbury. Vendia 25 carros por mês. Agora, faz festa quando vende quinze, e tem 200 clientes com pagamento atrasado. Mesmo assim, ela ajuda a igreja católica local. Num dia desses, deu 2.000 dólares a um brasileiro para comprar passagens para o Brasil e 1.000 dólares a outro para pagar o aluguel.
Fotos Gilberto Tadday | ADERINDO À CARIDADE |
"Quando as coisas estão normais somos mais generosos", confessa Michael Guccione, 62 anos, há quatro décadas vendendo carros da GM. Gerente de uma loja localizada a cerca de uma hora de Nova York, Guccione costuma dar dinheiro a entidades que distribuem comida de graça e ajudar a polícia local e o corpo de bombeiros, mas a crise está pegando. Nem tem esperança de vender o Corvette preto, edição especial, comemorativa das 500 Milhas de Indianápolis deste ano, com a assinatura de Emerson Fittipaldi na lateral. O carro custa 61.600 dólares. "Com a crise, já deixamos de pagar 700.000 dólares de imposto neste ano." Em Maplewood, cidadezinha de 20 000 habitantes no estado de Nova Jersey, a Wyman, revendedora Ford, fazia parte da comunidade desde 1935. Participou até do esforço de guerra na década de 40, mas a crise levou a empresa à lona. Os 35 funcionários foram demitidos, e um aviso está afixado na porta: "A Wyman Ford agradece a todos pelos últimos 73 anos". A revendedora viveu a época áurea dos carros, nos anos 50. Naquele tempo, magníficos modelos de cores vibrantes e detalhes cromados, conversíveis bicolores com nadadeiras estupendas eram o mais perfeito símbolo da prosperidade – e, por que não?, da liberdade de expressão.
SÓ PARA EXIBIÇÃO |
Com seus carrões espetaculares, os Estados Unidos transformaram-se, num mundo ainda sob os escombros da II Guerra Mundial, no país dos automóveis, da modernidade, do futuro. Na cultura americana, para a qual o carro nunca foi apenas um meio de transporte, tornou-se um imperativo estacionar na garagem um automóvel bonito e grande – e, já na década de 80, isso apareceria na raiz da crise de agora. Com os choques do petróleo na década de 70, o mundo começou a se interessar por carros com menor consumo de combustível, mas a indústria automobilística americana, talvez por defeito de nascença, jamais conseguiu grande sucesso nesse segmento. Assim, nos anos 80, fabricantes estrangeiras, sobretudo japonesas, começaram a entrar no mercado americano, ferindo o orgulho e a economia dos americanos. Nessa época, não era incomum um automóvel japonês amanhecer depredado em Michigan. Os carros da Toyota – que hoje se rivaliza com a GM pela condição de a maior indústria do mundo – eram chamados de "pedaços de lixo". Quando a gasolina tornou a ficar barata, nos anos 90, GM, Ford e Chrysler se voltaram para os carrões, agora na versão utilitários. Em 1993, as três estavam outra vez no auge, com mais de 75% do mercado americano. E, de novo, deixaram de lado as eternas promessas de carros menores, carros elétricos, carros movidos a hidrogênio, carros do futuro.
A conta chegou agora, e num momento em que é crescente a hostilidade ao automóvel. Ele é poluidor, aumenta as estatísticas de mortes violentas, faz barulho, desumaniza as cidades, produz intermináveis congestionamentos. É inimigo da saúde, um convite à obesidade e, nos países desenvolvidos, onde o transporte público é bom e barato, é visto como símbolo do egoísmo, do desperdício, do comodismo elitista, do isolamento social. Mas é um engano supor que estejamos perto do fim da era do automóvel. É mais provável que, no futuro, os carros fiquem apenas diferentes, talvez menores, mais econômicos, menos poluidores, quem sabe movidos a etanol no mundo afora, ceifando o domínio do petróleo. O que pode realmente ter chegado ao fim é a era anunciada pelo então presidente da GM, Charles Wilson, em 1953. Ao ser sabatinado para assumir como secretário de Defesa do presidente Dwight Eisenhower (1953-1961), Wilson foi perguntado se tomaria uma decisão em favor dos Estados Unidos que fosse contra os interesses da GM. Ele respondeu: "O que é bom para os Estados Unidos é bom para a GM".