NO BICO DA ÁGUIA
Os EUA estatizam a GM, para tentar salvar parte
da empresa, e enterram um ícone do capitalismo
e metáfora do sonho americano de liberdade
André Petry, de Detroit
Montagem com foto de Johnny Johnson/Getty Images |
A concordata da General Motors, um ícone do capitalismo americano que por quase oitenta anos foi o maior fabricante de automóveis do mundo e uma fonte de inovações tecnológicas que revolucionou desde as cirurgias cardíacas até as viagens à Lua, disparou o alarme da urgência em Detroit, cidade-sede dos três gigantes da indústria automobilística dos Estados Unidos. O prefeito Dave Bing pegou uma verba federal de 10 milhões de dólares para colocar mais 100 policiais nas ruas e comprar novos equipamentos para a polícia, temendo que a onda de desemprego aumente a criminalidade. A governadora Jennifer Granholm, que tentou ser atriz em Hollywood antes de seguir a carreira política, tratou da criação de um polo de cinema na região que deve abrir 3 000 vagas. A ministra do Trabalho, Hilda Solis, visitou Detroit e liberou 49 milhões de dólares para ajudar os desempregados. E o líder sindical Don Skidmore, 50 anos de idade e 31 de GM, matutava um jeito de reabrir a histórica fábrica de sua base, onde eram feitos os bombardeiros B-24 que ajudaram a derrotar Adolf Hitler na II Guerra Mundial. Em tom mais de lamento do que de protesto, ele dizia: "Fizemos história. Ajudamos a ganhar a guerra. Depois, fizemos os melhores carros. Os melhores. E agora onde estamos? Fechados! Fechados!".
Fotos Gilberto Tadday |
AMERICANO NA PELE Skidmore, com sua tatuagem pró-produtos americanos: "E agora, onde estamos?" |
A concordata da GM é devastadora para Detroit, mas vai muito além dos limites da cidade. De certo modo, é o fim simbólico do século XX. Nos 101 anos percorridos entre sua fundação, em 1908, por William Durant, um sujeito de família rica que não chegou a terminar o ensino médio, e sua queda, na semana passada, a GM virou um emblema do dinamismo econômico, industrial e tecnológico dos Estados Unidos. Mais que isso: tornou-se um estandarte da cultura americana, que abraçou a invenção do automóvel com um empenho e uma paixão incomparáveis no resto do mundo. Na sua idade de ouro, entre as décadas de 50 e 60, quando ainda não eram sinônimo de isolamento, sedentarismo e poluição, os automóveis da GM eram preciosidades ambulantes que saíam da fábrica com a capacidade de definir o estilo de vida, a classe social e as aspirações de seu dono. Os aventureiros e românticos andavam num Corvette conversível. Os milionários e chiques dirigiam um Cadillac. Os arrojados e modernos preferiam um Camaro. Imortalizados em centenas de canções e filmes, seus automóveis foram, durante anos, a mais completa metáfora do sonho americano de liberdade e riqueza.
O mentor do sucesso da GM chegou à empresa em 1923. Chamava-se Albert Sloan (1875-1966). Era engenheiro elétrico e tinha uma genialidade administrativa. Suas inovações permitiriam, anos depois, o surgimento das megacorporações transnacionais. Antes de Sloan, ninguém sabia como gerenciar uma empresa gigante. No seu tempo, fábricas da GM paravam de funcionar porque, subitamente, faltava matéria-prima ou se descobria que havia superpro-dução de determinado modelo de carro. Era uma fábrica já enorme, mas administrada como uma borracharia de beira de estrada. Não havia controle nem supervisão eficaz. Hoje, tudo isso parece uma banalidade, mas foi Sloan quem teve a ideia de implantar controles financeiros e de produção. Ele dividiu a empresa em departamentos, com cada área cuidando de seu quinhão. Inventou o planejamento anual. Planejou até obsolescência, com a produção de um novo carro a cada ano envelhecendo o do ano anterior. Com as divisões para cada marca da GM, Sloan venceu Henry Ford, então líder de mercado. Ford tinha olhos só para o preço. Seu Modelo T era barato, mas sempre igual e sempre preto. Sloan queria carros para todos os gostos e bolsos. Os Chevrolet eram acessíveis. Os Pontiac e Oldsmobile eram mais elaborados. Os Buick eram sofisticados. Os Cadillac, o supremo luxo. Antes, automóveis eram produtos utilitários, como uma tesoura ou uma lanterna. Depois, viraram símbolos de status, juventude, poder. Projetados e desenhados para encantar o consumidor, ficaram longos, ganharam rabos de peixe, frisos cromados, duas cores e aquelas nadadeiras sensacionais, que pareciam prontas para transformar o carro num foguete espacial. Sob a gestão de Alfred Sloan, nunca mais um carro foi apenas um carro.
Bettmann/Corbis/Latin Stock |
VENCENDO A GUERRA A fábrica de Skidmore, nos anos 40: construindo aviões para lutar contra Hitler |
Na semana passada, o presidente Obama comandou o funeral dessa história. O governo americano, que já colocara 20 bilhões de dólares para tentar salvar a empresa no início do ano, desembolsou mais 30 bilhões e ficou com 60% das ações. O restante está nas mãos do sindicato dos trabalhadores na indústria automobilística (17,5%), do governo do Canadá (12,5%) e de acionistas particulares (10%). No período de estatização, a empresa será reformulada, com corte de pessoal, de fábricas, de marcas. No Brasil, aonde a GM chegou em 1925 e hoje captura cerca de 20% do mercado, a situação é diferente – e melhor. Sendo a segunda filial mais lucrativa do mundo, não lançará mão de demissões nem precisará recorrer a Washington para fazer seus investimentos. "Temos recursos próprios para tocar nossos projetos", disse o presidente da GM do Brasil e Mercosul, Jaime Ardila, em entrevista ao repórter de VEJA Benedito Sverberi. Ardila garantiu: "Os rumores de que já existe um acordo de empréstimo com o BNDES não são verdadeiros".
A intervenção estatal produziu uma ironia incontornável: o país-símbolo do capitalismo estatizou a empresa-ícone do capitalismo. O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, não perdeu a piada assim que soube da novidade: "Obama nacionalizou nada mais nada menos que a General Motors. Camarada Obama! Fidel, cuidado! Ou vamos acabar à direita dele". A piada de Chávez é mesmo só uma piada. A estatização da GM é tecnicamente igual às estatizações na Venezuela de Chávez ou na Bolívia de Evo Morales, mas todo o resto é diferente. A Casa Branca assumiu a empresa por achar que, sem ajuda oficial, ela iria à falência. Poderia tê-la deixado falir, como seria o correto na letra fria do mercado, mas preferiu evitar os efeitos mais deletérios da falência. A decisão, no entanto, não decorreu do apreço do governo Obama pela estatização ou da suposição de que o controle estatal é superior ao privado, como pensam Chávez e Morales. Além disso, assim que expurgar a velha GM e colocar de pé a nova GM, a empresa será vendida e voltará ao mercado privado. Ou seja: é uma estatização temporária. Pode durar noventa dias ou até anos, mas não foi feita para se eternizar. Nesse período, porém, Washington precisa se preparar para enfrentar a praga de qualquer estatização: o enxame de políticos voando sobre a empresa. O assédio não demorou. A bancada de Michigan já protestou contra a importação de carros da GM da China. Apareceu prefeito oferecendo moleza tributária para levar a sede da nova GM para sua cidade e há deputado fazendo lobby para instalar fábrica em seu distrito eleitoral. É só o começo.