Política
FERREIRA GULLAR Dois mais dois: cinco
FOLHA DE S PAULO
Oswald e João Cabral foram ícones dos concretistas, que tinham pouco a ver com o que eles escreveram |
JOÃO CABRAL de Melo Neto nasceu no dia 9 de janeiro, e Oswald de Andrade, no dia 11; este, que é de 1890, completaria neste mês 130 anos, e aquele, 90. Não sei se você acredita em horóscopo, mas pertencerem esses dois ao mesmo signo e terem nascido quase no mesmo dia de janeiro causa espanto, já que são personalidades muito diferentes... A conclusão a tirar daí seria que essa história de que pessoas nascidas sob um mesmo signo do zodíaco têm personalidades afins não merece crédito.
Fiz, certa vez, observação semelhante a respeito de Vinicius de Moraes e Fernando Sabino, ambos de Libra, que eram, não obstante, o oposto um do outro. Porém um entendido em astrologia explicou-me que, embora fossem do mesmo signo, tinham ascendentes diversos, e o ascendente é que conta.
Dei como aceita a explicação, mesmo porque, virginiano que sou, admito ter algumas características atribuídas a esse signo, definido pelo lema "eu analiso". A esse mesmo signo pertencem Goethe e Artaud, ambos atuando na fronteira da lucidez e da loucura, que não é a minha praia. Já Oswald e João Cabral são de Capricórnio, cuja frase definidora é "eu utilizo".
Segundo o horóscopo, os nascidos em Capricórnio são racionais, tímidos e cautelosos, qualidades essas que podem se ajustar a João Cabral mas nunca a Oswald de Andrade, que parecia abusar da lógica e desconhecer a timidez e a cautela. Pelo menos à primeira vista, é difícil encontrar personalidades tão diversas quanto a deles, o que me lembra a frase que ouvi de um sertanejo maranhense, referindo-se a dois conhecidos seus: "Um é alto, o outro é baixo; um é gordo, o outro é magro; um é preto, o outro é branco, e isso é o que há de mais parecido nos dois".
Pois é, e foram exatamente Oswald e João Cabral que os poetas concretistas de São Paulo elegeram como ícones e precursores do seu movimento literário. Não é curioso?
Não vai nisso nenhum reparo, apenas constato. Muita gente sabe que, numa conversa minha com Augusto de Campos, nos primórdios da poesia concreta, ao citar Oswald como um poeta que deveria ser considerado precursor de uma nova poesia, ouvi dele que Oswald era um esculhambado e irresponsável. Ainda assim, eles reviram esse juízo sobre o poeta e o redescobriram.
Na verdade, àquela altura dos anos 50, ninguém mais ligava para Oswald de Andrade, nem se reeditavam seus livros. Os concretistas o resgataram do olvido e o tornaram um nome atual de nossa literatura, muito embora, creio eu, se ele vivo estivesse, dificilmente daria seu aval à poesia deles, que pouco ou nada tinha a ver com a sua, que era voltada para a recuperação da voz genuína da língua.
Outras características suas eram a irreverência escrachada e o humor desrespeitoso, qualidades ausentes tanto na poesia concreta quanto em seus autores, mas que, graças a eles, inspirou a geração do mimeógrafo nos anos 70, mais próxima dele, no espírito e na forma.
Maior afinidade havia entre os concretistas e João Cabral, que concebia o poema como construção racional, sem derramamentos emocionais e confessionalismos. Por isso mesmo, ele aprovou a poesia concreta, considerando-a, implicitamente, uma consequência de sua poesia construtivista.
De fato, não era, e tive oportunidade de dizer isso a ele. A diferença fundamental reside no seguinte: o poema de João Cabral funda-se no discurso, para negá-lo, enquanto a poesia concreta o eliminou. E eu, de certo modo, tenho culpa nisso, porque, em meu livro "A Luta Corporal", desintegrara o discurso, fazendo surgir a necessidade de criar-se uma nova sintaxe, não discursiva.
Essa nova sintaxe visual foi concebida pelos concretistas, que, assim, inauguraram um modo novo de construir o poema. Essa diferença é essencial, uma vez que é o discurso que dá concretude à expressão verbal, enfim, ao que é escrito. A mera justaposição de palavras, por proximidade e semelhança fonética, sem o discurso, resulta em expressão abstrata. "Concreto", disse Hegel, "é a soma todas as determinações". Ou seja, o gato não existe, mas sim este gato que está na poltrona...
Mas não foi para falar disso que escrevi esta crônica, e sim para manifestar minha surpresa com tamanha diferença de personalidade entre dois capricornianos, nascidos quase num mesmo dia do mês de janeiro. E, como não bastasse, autores de obra literária tão diversa, terem se tornado patronos de um movimento literário que pouco tinha a ver com o que cada um deles efetivamente era e escreveu. É que, na vida como na arte, frequentemente dois mais dois são cinco.
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