Míriam Leitão - Ajuste de contas
Política

Míriam Leitão - Ajuste de contas




PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
28/8/2008

Pela forma atual de calcular o superávit primário, o caixa da Petrobras entra com sinal positivo; todo o investimento entra com sinal negativo. Dois erros. O caixa não pode ser contado como receita, principalmente de uma empresa que tem outros sócios. Sempre há avanços a se fazer na metodologia das contas públicas. Qualquer mudança, para ser boa, tem que ter um norte: mais transparência.

Na época da escalada inflacionária, o FMI aceitou que o Brasil adotasse o déficit operacional. O primário não era ainda pensado, o nominal embutia a correção monetária da dívida pública e dava um resultado estapafúrdio. Livrar-se daquele conceito de déficit/superávit operacional foi uma das boas conseqüências da estabilização. O Brasil ficou mais parecido com o mundo. O passo óbvio agora era passar a olhar o déficit nominal, e ter metas de zerá-lo. Isso não pode ser um constrangimento para a política monetária; tem que ser um constrangimento para a criação de despesas rígidas, que não possam ser reduzidas.

Este caso dos números da Petrobras mostra um exemplo da confusão embutida numa estatística que é aceita por todos como boa. Se o caixa da Petrobras é integralmente apropriado para efeitos contábeis no cálculo do superávit primário, isso significa que o governo está tratando como sua uma empresa de capital aberto.

Por outro lado, há o velho debate sobre o conceito de investimentos de estatais entrarem como déficit nas contas públicas. Investimento não é gasto; pelo menos, não deveria ser. As estatais reclamam que isso praticamente as proíbe de investir, já que o governo é contabilmente punido quando elas investem. A Petrobras tem atualmente diante de si uma enorme necessidade de investir. Mudanças já feitas para evitar o impacto nas contas públicas não foram suficientes. Na empresa, eles preferem estar livres dessa amarra.

Até agora, não ficou muito claro o que o governo vai mudar, quando vai mudar e de que forma serão feitas as alterações. O alerta feito por alguns economistas é que é sempre melhor ter mais números que menos. Ou seja, o conceito de primário tem que continuar sendo divulgado; as séries precisam permanecer.

A Fazenda está dizendo que as estatais passarão a entrar nas contas de dívida pública pelo patrimônio e fala em avaliar pelo valor de mercado das ações que o Tesouro detém dessas companhias. Dúvida: e no caso de oscilação brusca do valor das ações por razões de mercado e com efeito temporário? Agora, por exemplo, se isso estivesse em vigor, o governo teria tido uma piora dramática nas suas contas, porque as ações da Petrobras caíram 22% este ano. Isso representa que o valor da companhia caiu R$88 bilhões. E por que o valor da ação da Petrobras caiu quando exatamente se ampliam de forma extraordinária os seus horizontes com o pré-sal? Muito da queda se deve a razões aleatórias: crise internacional, reajuste de portfólio de investidores globais expostos em mercados maduros, oscilação no mercado futuro de petróleo.

O secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Nelson Machado, disse que o patrimônio da União e dos estados é mal avaliado, e comparou: "É como se a pessoa tivesse uma dívida de R$10 mil no banco e, na conta corrente, R$3 mil. Não é contabilizado o relógio, o brinco." De fato. Mas se o relógio e o brinco não tiverem liquidez? Posso arbitrar um valor para o meu brinco que o mercado não pagaria. Eu estaria superavaliando os ativos.

A dívida brasileira é alta, qualquer que seja a forma de contabilizá-la. Pior, o conceito da dívida pública líquida é a dívida externa mais dívida interna menos reservas cambiais. Ela está em queda forte. Já foi até de 60% do PIB, e está em 42%. Parte da queda foi a desvalorização que reduziu a dívida cambial, a acumulação das reservas e a redução da dívida externa. Vendo só a queda, o país deixa de ver o que realmente preocupa: a dívida interna aumentou muito, e é justamente a mais cara.

Olhar tudo contabilmente tem o defeito de não se ver o panorama mais amplo. Agora, por exemplo, o governo e o mercado comemoram que o superávit primário cresceu e, em Brasília, diz-se que houve redução das despesas. Não houve nenhuma redução de despesas. Elas continuam crescendo num ritmo preocupante, e o superávit continua sendo alcançado graças ao contribuinte, que manda mais dinheiro para o governo. É a arrecadação que cresce. Com ela, o governo se sente confortável para aumentar despesas; muitas delas não poderão ser reduzidas amanhã, se houver uma mudança de cenário.

O Estado brasileiro é pesado e caro. Ficou muito mais caro nos últimos anos, como mostram os dados de aumento da carga tributária. O Brasil é um país com 7% de população com mais de 65 anos que gasta já 12% do PIB com previdência. Como disse o economista Ricardo Hausmann, essa conta da previdência num país tão jovem não tem precedentes no mundo. O Brasil pode - e deve - aperfeiçoar suas contas públicas, mas não deve perder de vista que contabilidade não faz milagre. O país precisa de ajuste fiscal que alivie as pessoas e empresas. Isso é tão certo quanto dois e dois são quatro.




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