Todo ano os jornais noticiam marchas de prefeitos rumo a Brasília para
exigirem recursos. Os mesmos periódicos trazem respostas evasivas ou
demagógicas do poder central. E como resultado temos as notícias de
corrupção, cujos focos passam pelos municípios. Estes, se olharmos
bem, constituem o começo e o fim do imenso assalto ao erário. Mas a
ausência de uma Federação verdadeira é o que gera os assaltos de
políticos e seus comparsas na vida civil.
É difícil entender o que se passa hoje sem revisar a história das
instituições que herdamos do passado.
Munícipes, na Antiguidade, eram os habitantes itálicos que tinham
direitos de gestão própria, assimilados aos romanos. Quando sem aquela
autonomia, as cidades tinham o nome de praefecturae e seus habitantes
não perdiam a qualidade de cidadãos de Roma, mas deviam obediência ao
Senado de Roma.
Existiram municípios em toda a Europa até a queda do Império Romano. A
federação que ligava as urbes a Roma as diferenciava em várias
categorias. As mais autônomas, os municípios, concluíam um foedus
aequum com a cidade dominante. Essa marca perdurou até a queda do
império. O município e sua autonomia eram, ao mesmo tempo, base
econômica e obstáculo na edificação do Estado absolutista. As cidades,
ameaçadas pela nobreza e pelo clero, sofriam o assédio dos papas e
monarcas que tentavam centralizar nações. Essa situação continuou até
o século 18.
A liberdade municipal, segundo Alexis de Tocqueville, sobreviveu ao
feudalismo. Em nações como a alemã e a italiana, as cidades chegaram a
formar pequenos Estados. As Cortes da França, da Espanha e de países
menos estratégicos, como Portugal, sufocaram as cidades ao impor sua
burocracia, com a "igualdade" de todos diante do rei. No século 18 o
governo municipal degenerou em oligarquia, "algumas famílias conduziam
nele os negócios, tendo em vista fins particulares, longe do olhar
público e sem serem responsáveis diante dele: trata-se de uma doença
espraiada por toda a França" (O Antigo Regime e a Revolução). O poder
régio domou as urbes, tornando-as centros corruptos e venais. A
burocracia sufocou a independência dos municípios.
Passemos ao Brasil.
Aqui, a história política mostra similaridade com a descrita por
Tocqueville. Uma agravante: nossas cidades já apareceram sob o
absolutismo, não viveram a autonomia romana nem lutaram para manter
suas prerrogativas na Idade Média. Não ocorreram nelas eleições livres
nem a responsabilidade dos governantes diante dos munícipes. Terra de
conquista, sobretudo econômica, o Brasil foi administrado segundo a
moderna "igualdade de todos sob o rei".
Boa parte dos ofícios públicos era vendida ou alocada segundo os
interesses da Corte. Em imenso território, as cidades eram geridas a
distância. Os impostos seguiam para Lisboa, com pouquíssimo retorno à
origem. A tendência centralizadora do poder consolidou-se em Portugal
nas reformas pombalinas. Com a vinda da Casa Real se compôs a Corte no
Rio de Janeiro, onde se integravam a nobreza, burocratas de alto
escalão, serviçais e negociantes. O "povo" era a aristocracia,
composta pelos "homens bons" sem sangue judeu. A representação
"popular" fazia-se por petições, dando-se o direito de voto sem que os
cidadãos tivessem presença ativa na esfera pública.
A grandeza do território, as revoltas, o exemplo dos países vizinhos
que se tornaram Repúblicas, a memória da Revolução Francesa, todo um
amálgama de pavores cortesãos definiu nosso Estado desde o nascimento.
Surgiram dois projetos conflitantes: o da monarquia soberana e o de um
governo constitucional. Venceu o primeiro, o império civil foi
instituído por direito divino. A Constituição de 1824 incorporou o
quarto Poder e o ampliou, pois ele podia dissolver a Câmara de
Deputados, afastar juízes suspeitos, etc. A preeminência do Poder
Moderador sobre os demais foi mantida mesmo nos tempos de Regência. Na
República, tais prerrogativas foram mantidas para o chefe do Estado.
Com elas veio a pretensão dos presidentes de supremacia sobre os
demais Poderes.
O nosso Estado é um arremedo de República, sem harmonia entre os
Poderes, sem federalismo. Ele é império, sob o Executivo central. Se
no Brasil foedus significasse um "pacto", teríamos graus crescentes de
autonomia, dos municípios ao poder de Brasília. Mas nossas leis
desconhecem diferenças regionais e culturais, de geografia, etc. Uma
uniformidade gigantesca obriga todos a seguirem a burocracia do
Executivo. Não existe tempo nem autoridade para o experimento e
modificações das políticas públicas em plano particularizado.
As "tragédias" das enchentes mostram o desastre desse centralismo. Não
temos uma escala real de responsabilização pelas políticas públicas.
Todas as decisões são açambarcadas pelos que habitam os palácios
brasilienses. Logo, as oligarquias parasitam os Poderes (a mais
célebre mantém este jornal sob censura) e mostram face dupla: trazem
os planos do poder central (e recursos) aos Estados e levam ao
Planalto as aspirações regionais.
As tratativas entre os dois níveis (central e estadual) ocorrem no
Congresso Nacional. Ali, Presidência e Ministérios buscam apoio para
os seus projetos. É impossível conseguir verbas sem "favores",
mercadejo dos cargos, pró-labore "informal" por "serviços prestados".
Enquanto não existirem municípios autônomos, sobretudo nas finanças,
testemunharemos: uma das fontes mais poluídas de nossa política
corrupta é institucional.
Federação de fato, já!
FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
CAMPINAS (UNICAMP), É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ''O CALDEIRÃO DE
MEDEIA'' (PERSPECTIVA)