Política
Tudo em família Merval Pereira
O Globo
Quando todos são culpados, ninguém tem culpa. Foi mais ou menos isso o que a presidente Dilma Rousseff tentou fazer em sua visita a Cuba: tirar a responsabilidade do regime ditatorial sobre as transgressões aos direitos humanos, passando a ideia de que esse é um problema generalizado, inclusive no Brasil e nos Estados Unidos, como se as barbaridades que acontecem em Cuba fossem comuns na maioria dos países do mundo e, portanto, uma questão que tem de ser tratada globalmente. É um raciocínio político absurdo, porque iguala democracias e ditaduras. Já havia tratado do assunto no meu blog no site do GLOBO com a seguinte nota: "Alhos com bugalhos "O raciocínio da presidente Dilma sobre os direitos humanos faria até sentido se ele comparasse regimes políticos semelhantes. Mas ela simplesmente está misturando alhos e bugalhos. "Uma democracia como a brasileira tem de ser criticada, e frequentemente o é, pelas falhas nos direitos humanos nas suas prisões, por exemplo, que são vergonhosas, ou nas comunidades pobres. "Ou os Estados Unidos, como a própria presidente brasileira lembrou, quando abusam dos direitos dos prisioneiros de Guantánamo. "E a imprensa internacional não se cansa de denunciar esses abusos, lá e em outras regiões do mundo onde os Estados Unidos, através de seus agentes, cometem qualquer tipo de barbaridade. "E geralmente, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos - mais lá do que aqui, temos que admitir -, os agentes públicos que abusaram de seu poder e mancharam o nome do país são punidos, e o sistema judiciário costuma atuar com rigor. "O mesmo não se pode dizer de Cuba, onde o abuso dos direitos humanos é uma política de Estado, e onde dissidentes morrem de fome por falta de um mínimo de atuação do Estado, que é uma ditadura de mais de 50 anos, sem Parlamento livre nem liberdade de imprensa, e, portanto, não pode ser comparada com outros países democráticos que falham na proteção dos direitos humanos." Mas é preciso retomar o assunto, para que pelo menos fique claro que não é possível enganar todo mundo sempre. Na primeira visita de Lula a Cuba como presidente, logo após a crise em que alguns dissidentes que tentaram fugir da ilha foram fuzilados, Frei Betto, que era assessor especial da Presidência, garantiu que Lula conversara com Fidel sobre o assunto, a ponto de irritá-lo. O velho ditador, como reação, cobrara de Lula atuação mais firme na reforma agrária, a favor do MST. O fato é que Lula e todos os membros do governo que têm uma relação pessoal com Cuba consideram que não devem fazer críticas públicas ao governo cubano. Tilden Santiago, que foi embaixador do Brasil em Cuba durante um período do governo Lula, quando era petista - depois aceitou uma boquinha no governo tucano de Aécio Neves e teve que sair do partido -, disse claramente certa vez que não se sentia bem em criticar o governo cubano, pois era sua "família". Ou seria "famiglia"? Alegam os petistas que é mais eficiente tratar de assuntos delicados discretamente. É uma tática de quem trata com um amigo, e não de Estado para Estado. E os resultados, até o momento, têm sido nulos. A Espanha, por exemplo, um dos maiores financiadores de Cuba, trabalhando junto à Igreja Católica de Cuba, representada por seu ministro das Relações Exteriores, Miguel Ángel Moratinos, conseguiu obter do governo ditatorial cubano o compromisso de libertar 52 dos 167 presos políticos do país, em junho do ano passado. Essa atitude brasileira já produziu fatos vergonhosos, não condizentes com o Estado democrático, como a entrega ao governo cubano dos pugilistas cubanos Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que haviam fugido da concentração durante os Jogos Pan-Americanos no Rio, em 2007, e queriam ficar no Brasil asilados. Meses depois, desmentindo o governo brasileiro, que disse que os cubanos pediram para voltar ao seu país, Erislandy Lara, bicampeão mundial amador da categoria até 69 quilos, chegou a Hamburgo, na Alemanha, depois de ter fugido em uma lancha de Cuba para o México. Em 2009, Rigondeaux acabou fugindo para Miami, nos Estados Unidos. O prestígio internacional do então presidente Lula ficaria abalado depois de sua atitude diante da morte do dissidente cubano Orlando Zapata Tamayo em uma prisão, após 85 dias de greve de fome. Lula posou sorridente ao lado de Fidel e Raúl Castro, e, quando questionado sobre a greve de fome, fez diversas declarações, todas elas defendendo o governo cubano e acusando os presos políticos. "Temos de respeitar a determinação da Justiça e do governo cubano de prender as pessoas em função da legislação de Cuba, como quero que respeitem a do Brasil." Mais uma vez a confusão proposital entre leis de uma ditadura e as de uma democracia. Pois a presidente Dilma repete a mesma tática, ela que vendia a ficção de que sua política externa se diferenciava da de Lula pelo respeito aos direitos humanos quando deu uma entrevista ao jornal "Washington Post" antes mesmo de tomar posse, condenando o apedrejamento de mulheres no Irã. Não se diga que ela foi específica com relação à condenação por apedrejamento por se tratar de uma questão que envolve preconceito contra a mulher. O jornal destacou o fato de Dilma ter lutado contra o regime militar no Brasil e ter sido torturada, e a presidente eleita afirmou que tinha "compromisso histórico" com aqueles que foram ou estão na condição de presos políticos. Depois de tomar posse, a presidente deu novos passos no sentido de reparar essas violações dos direitos humanos dos presos políticos brasileiros. Em novembro de 2011 sancionou a lei que instituiu a Comissão da Verdade. Segundo suas declarações na ocasião, a sanção significava que o Estado deve subordinar-se aos direitos humanos, mas enfatizou que não se tratava de uma "revanche histórica", mas uma garantia do direito à memoria, à verdade e à cidadania. Todas essas belas palavras valem para o Brasil, para os Estados Unidos, para o Irã, mas não valem para Cuba?
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