Há três meses, uma operação da Polícia Federal, denominada Satiagraha, registrada com estardalhaço pelos holofotes e câmeras de televisão, gerou grande impacto nos meios políticos e, na seqüência, imenso mal-estar no meio jurídico.
A mistura de combate ao crime com busca de performance publicitária resultou desastrosa e gerou bizarra inversão do quadro. Hoje, os responsáveis pela Satiagraha, à frente o delegado Protógenes Queiroz, estão no banco dos réus e os que ela aprisionou estão soltos, reclamando na Justiça indenização por perdas e danos.
Perdeu-se uma oportunidade preciosa de fazer justiça, na busca de atalhos processualísticos e na banalização ilegal de recursos extremos, como o da quebra de sigilos. O delegado está sendo punido por sua corporação. E o juiz Fausto De Sanctis, que exerceu com ele uma inusitada parceria em todo o processo, está sendo duramente questionado na cúpula do Judiciário. Recapitulemos.
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, diante da inconsistência dos autos, concedeu habeas corpus ao empresário Daniel Dantas, investigado pela operação, sob múltiplas (e graves) acusações, e detido por ordem judicial de De Sanctis, juiz de primeira instância. Sua decisão foi contestada pelo juiz, que não se limitou a declarações públicas hostis, o que já seria excesso inadmissível. Foi além: emitiu nova ordem de prisão, 24 horas depois, que resultou em novo habeas corpus do presidente do STF. Estabeleceu-se então duelo público entre magistrados.
Se o episódio terminasse aí, já se estaria diante de um escândalo sem precedentes na história judiciária brasileira. Mas não parou: uma manifestação de centenas de juízes e procuradores, solidários a De Sanctis, agravou ainda mais o quadro, pondo em dúvida a integridade e isenção do presidente do Supremo.
O habeas corpus decorrera de uma constatação: falhas processuais graves, indícios insuficientes, que não demonstravam a necessidade de privar o acusado da liberdade. Semana passada, o pleno do STF confirmou no mérito, por nove a um, o habeas corpus, concedido inicialmente em caráter liminar.
Mesmo assim, não cessou a polêmica no meio judiciário. Juízes e procuradores continuaram a contestar pela imprensa aquela decisão. Mesmo sob investigação de seus pares, o delegado Protógenes Queiroz sente-se no direito de continuar a emitir pela imprensa juízos de valor críticos a respeito da decisão.
O juiz, por sua vez, acabou revelando curiosa interpretação do que seja uma Constituição: "mero documento", que "não pode estar acima do povo". Ou seja, um detalhe, que, conforme a circunstância, não deve ser levado em conta. Nisso, ao menos, mostrou coerência, pois agiu sob essa convicção em todo o episódio.
Ora, na definição sábia de Ulysses Guimarães, a Constituição "é a cidadania" – é, portanto, não "um documento", mas o "estatuto do cidadão" -, estando ali definidos seus deveres e direitos. Fora dela, como defini-los? Se se admite outra forma de defini-los, prevalecerá o subjetivismo, o que é uma temeridade, insustentável no Estado democrático de Direito, regime da maioria e da lei.
Nada favorece mais o crime que a tentativa de puni-lo fora da lei. Profanando-se os ritos processuais, o ordenamento jurídico, o chamado devido processo legal, a investigação será derrubada nos tribunais. E o réu se transformará em vítima e pedirá reparação pecuniária no Judiciário por danos morais. E aí temos o quadro presente: personagens acusados de terem, com seus atos, imposto prejuízos à sociedade, sendo indenizado com o dinheiro dos impostos dessa mesma sociedade.
Como se sabe, os três mais notórios personagens acusados pela Operação Satiagraha – Daniel Dantas, Celso Pitta e Nagi Nahas - já se movimentam para pedir indenização na Justiça. Passaram de réus a vítimas. Os indícios que contra eles pesam são fortes, mas, na tentativa de puni-los com atalhos processualísticos, lançando mão de ilegalidades, e com extremo amadorismo, perdeu-se a oportunidade de fazer justiça. Não é a primeira vez que isso acontece. Os criminosos do colarinho branco e seus advogados agradecem.
Ruy Fabiano é jornalista